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Sobre nossas identidades

Ana Gualberto
Iyá Oju Omo Ilê Adufé
Coordenadora de ações com comunidades tradicionais de KOINONIA
Editora do Observatório Quilombola

Em tempos de pandemia, quarentena e isolamento social, resolvi escrever sobre o que nos conecta. Falarei um pouquinho sobre identidades que são coletivas. Vou me deter a duas populações tradicionais, quilombolas e povo de terreiro. Mas por que essas duas, Ana?

Ora, gente! Estamos no OQ – observatório quilombola, e eu sou de povo de terreiro, então vou juntar as duas coisas e reafirmar aqui algo que aprendi em KOINONIA, que é juntar esses dois grupos no conceito de territórios negros.

Eu e minha filha Heloysa, Dofona de Xangô

Os terreiros e quilombos são territórios histórico, social, político e cultural negros. Suas organizações internas têm a ver com sua herança organizativa e comunitária ancestral.

Em minha dissertação de mestrado[1] reafirmo que:

“As comunidades remanescentes de quilombo são categorizadas como grupos étnicos, segundo a legislação vigente no Brasil. Segundo Barth, grupos étnicos são “um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão” (BARTH, 1976, p. 17). São laços relativos à territorialidade, como o predomínio do uso comum e utilização de áreas de acordo com a sazonalidade das atividades produtivas e outros usos, “caracterizando diferentes formas de uso e ocupação do espaço, que tomam por base laços de parentesco e vizinhança, assentados em relações de solidariedade e reciprocidade” (ABA, 1994)…” (p. 28)

Comunidade quilombola Alto da Serra – RJ (Foto: Fabiene Gama)

Estes conceitos se aplicam também para o povo de santo, que segundo a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais – PNPCT (Decreto 6040/2007)[2], são comunidades tradicionais assim como os quilombolas, indígenas, vazanteiros, pescadores, entre outros grupos étnicos.

Terreiro Opô Afonjá (Foto: Acervo KOINONIA)

Um terreiro é um centro tradicional que agrega um grupo religioso estruturado segundo as normas de um rito afro-brasileiro. A palavra candomblé, termo de origem quimbundo por cujo emprego se identifica, hoje, uma modalidade de culto afro-brasileiro, portanto, criado no Brasil, inspirado no que foi vivenciado no continente africano. Utilizamos também a palavra roça para identificar o espaço físico dos terreiros de candomblé. Assim como a palavra barracão. Essa expressão traduz a memória da antiga natureza urbana do espaço. A palavra axé, que tem vários significados, também frequentemente usada para assinalar tanto um templo, espaço físico, dessa natureza como o tipo de grupo religioso que nele se dedica ao culto dos voduns, inkises ou orixás[3].

Depois de trazer essas informações para termos como base em nosso curto texto, apresento a questão para minha abordagem: essas duas identidades são coletivas e não individuais.

Ser quilombola não é ser negro ou ter sua história conectada com pessoas escravizadas. Ser quilombola é ser parte de uma comunidade que sustenta sua identidade. Da mesma forma que ser candomblecista é ser parte de uma comunidade, um egbe (em ioruba, idioma de minha família de axé), é fazer parte desta comunidade que sustentará sua identidade. Ser candomblecista não é ser estudioso da religião, não é ser místico, ou gostar de tal Orixá, é ser parte do coletivo. Assim como nos quilombos é saber de onde viemos, quem veio antes, apropriar-se da história deste grupo e ser parte dele.

Foto: Erin McManaway

Muito me incomoda como mulher religiosa e iniciante nos estudos de minha religião, a postura de muitas pessoas que se dizem ser de candomblé, mas não são parte de lugar nenhum. Não são parte de um egbé. Não tem zelador ou zeladora, não sabem dizer quem os iniciou. Isso é fundamental para este lugar de fala e pertença. Desculpe contar, mas esta religião só se aprende vivendo, só se aprende observando, ouvindo os mais velhos, observando mais e mais. É assim que continuo a buscar aprender um pouquinho a cada dia, a cada função na roça, a cada etapa. Utilizar nosso sagrado como modismo é crueldade, tendo em vista todos os efeitos do racismo, principalmente o religioso. Todos os símbolos e signos são etapas percorridas em nossa trajetória espiritual. Pense que a gente precisa completar várias etapas para usar determinadas pedras, e ai o povo que diz ser nosso aliado na luta contra o racismo estrutural, compra essas pedras e usa de colar… Identifica-se a um Orixá como se fosse um signo do zodíaco. Apropria-se deles como se fossem figuras mitológicas… Não. Permita-se conhecê-los dentro de nossos barracões, em nossas festas. Assim poderá começar, apenas começar a entender toda intensidade de mãe Oxum, muito além da mulher bela e vaidosa, é muito mais que isso. Ai, ai… Puxado demais!

Colar de babalaô, arte nagô, República Popular do Benim, acervo MAE-USP [4]

Então meu conselho é: Quer ser de candomblé? Arrume uma casa que lhe acolha e junte todo seu saber e … jogue fora!

Se permita ser uma tabula rasa e escrever ou não, sua história espiritual nessa religião afro diaspórica.

Muito axé pra nós e que Omolu, o senhor da terra[5], nos proteja da pandemia!

[1] GUALBERTO, Ana Emilia Martins, IDENTIDADES E DIREITOS – MULHERES LIDERANÇAS DOS QUILOMBOS DE BARROSO E JETIMANA, CAMAMU/ BA. SSA, 2018. Disponível no www.repositorio.ufba.br

[2] http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Decreto/D6040.htm

[3] SERRA, Ordep. (org) Laudo Antropológico – Exposição de motivos para o tombamento do conjunto monumental do KweVodunZò,OrdepSerrra, Serge Pechiné, Adelson de Brito, Bruno Andrade, Celso Cunha, Larissa Fontes, Caetano Portugal, DofonoHunxi Martins, Marivalter da Silva Junior. Salvador, BA, 2015.

[4] Imagem disponível em http://historianovest.blogspot.com/2011/07/africa-cultura-material-filosofia-e.html?m=0

[5] Saiba mais sobre este Orixá em https://www.raizesespirituais.com.br/orixas/omolu-obaluaie/

Ana Gualberto

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