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Polêmica envolvendo identidade quilombola dos kalungas

Falsa descendência

Tese de doutorado defendida na França afirma que os calungas são, na verdade, um grupo de camponeses humildes de Goiás

*Welliton Carlos

Da editoria de Cidades*

Goiás organizou sua estrutura simbólica a partir de registros culturais e históricos como as bandeiras, a poesia de Cora Coralina, a Guerrilha do Araguaia e a descoberta de um grupo de famílias negras no Nordeste do Estado que seria remanescente de um quilombo do século 18. Imagine agora se parte desse quadro de redenção histórica do goiano se partisse. Imagine se os calungas jamais tivessem existido.

O professor Joãomar Carvalho de Brito Neto, diretor da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (UFG), desconfiou de reportagem que escreveu, em 1987, para o Jornal do Brasil, assim como da euforia perpetrada pela mídia nacional e de conclusões aceitas pela comunidade acadêmica brasileira como verdade imutável. A desconfiança transformou-se num objeto de pesquisa científica. Agora, um exaustivo trabalho de campo pode evidenciar rachaduras nesse painel da história goiana. Sua tese de doutorado, defendida na Universidade de Paris 8, diz com todas as letras: não existem provas científicas de que a comunidade apresentada como calunga seja oriunda de algum quilombo do mesmo nome. Em resumo: aquele pessoal que vive na região do Vale do Paranã, nos municípios de Cavalcante, Terezina de Goiás e Monte Alegre, é gente comum, como qualquer outro camponês daquela região. Joãomar não pretende desancarnenhum intelectual de Goiás. Muito pelo contrário: É apenas um esclarecimento, afirma ao Diário da Manhã. Acontece que as conclusões conclamam para o debate. O estudo do professor de jornalismo tem 380 páginas de pesquisas e checagens do material publicado sobre os calungas, objeto de diversos estudos da premiada antropóloga Mari Baiocchi e de outros pesquisadores. De imediato, o texto, que ainda carece de versão definitiva em português, aponta os caminhos percorridos pelos calungas até sua denominação e descoberta pela antropóloga e veículos de comunicação. Nas palavras de Joãomar, essa gente não era calunga, mas passou a ser depois de uma boa estratégia acadêmica – ou de marketing, como se pode também inferir por ângulo diverso. Orientado por Armand Mattelart, um dos principais teóricos contemporâneos de comunicação, o trabalho do professor goiano teve a melhor nota conferida pela conceituada universidade francesa.

Questionada a respeito da tese, Mari Baiocchi não quer polêmicas: Vamos esperar o professor lançar seu livro. Ela diz ao DM que não tem conhecimento do conteúdo e prefere evitar entrevistas sobre esta tese. O texto do professor Joãomar começa com a descrição de um seminário programado por ele e outros intelectuais. No dia 25 de janeiro de 1990, a faculdade organizava o Fala Calunga, evento para discutir a vida da comunidade que seria remanescente de quilombos do século 18. Segundo Joãomar, a platéia começou a cobrar da coordenação uma espécie de direito de voz dos representantes dos calungas. É que ninguém daquela comunidade havia falado sobre seus costumes e a própria vida até aquelemomento.

A introdução da tese de Joãomar é simbólica da situação dos calungas no final da década de 80: muita gente falava e definia o povo, mas ele mesmo não costumava ser ouvido pelos veículos de imprensa. Era somente objeto de estudo. Na tese, o professor afirma que a antropóloga atuava com certa restrição. Ou seja: ela não permitia liberdade de contato com tais comunidades. Joãomar escreve que existia um manto preservacionista impedindoa coleta de dados sobre o grupo. A partir destas observações, ele começou a se interessar cada vez mais pelo núcleo localizado na região Norte de Goiás.

Além de realizar visitas na própria comunidade, Joãomar catalogou inserções dos termos calunga na mídia e historiografia brasileira e regional.

Muitas perguntas

Desde 1991, a região motivo da polêmica intelectual é considerada Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Não bastasse isso, várias conclusões foram assimiladas como verdades por conta de instituições culturais civis e do próprio governo. A discussão sobre os calungas começou com uma linha de pesquisa antropológica que depois foi abraçada pelo Estado de Goiás, a partir do Idago (Instituto de Desenvolvimento Agrário de Goiás).

Livros, músicas, documentários, reportagens e leis foram feitos para regulamentar e perpetrar as histórias dos calungas. Eis aqui um problema: até que ponto Goiás está envolvido nessa história para agora pensar diferente? A coragem da tese do professor, independente de se manter a estória ou a tese, é a ousadia de questionar uma catedral já construída e objeto de fé de tantos crentes. As evidências apresentadas pelo professor Joãomar Carvalho não são apontamentos de outro mundo, mas perguntas que precisam de respostas. A primeira pergunta: a técnica de pesquisa histórico-oral tem validade científica? Pois é este o principal instrumento utilizado pelo grupo que defende a existência dos calungas como remanescentes de um quilombo com a mesma denominação. Segundo questionamento: o que garante que as comunidadesvizinhas também não sejam, então, calungas? Terceiro: quem ganhou com a construção dessa narrativa prosaica?

O professor Joãomar ressalta a existência de outros povos semelhantes e que poderiam exigir direitos iguais aos usufruídos pelos calungas: Existem outros grupos negros com estas mesmas características no Estado de Goiás nas áreas dos antigos garimpos de ouro do século 18 (cidades de Goiás, Crixás, Jaraguá, Anicuns, Catalão, Mineiros, Pirenópolis, Cavalcante etc.), assim como em idênticas áreas do vizinho Estado do Tocantins.

Logo no começo de sua tese, Joãomar cita o artigo que Mari Baiocchi inaugura formalmente a denominação kalunga. Batizado de Kalunga: liberdade e cidadania, a denominação aparece pela primeira vez na revista ICHL. Daí ele procura cercar todas aparições e definições referentes aos calungas. Joãomar procura citações que poderiam sustentar a descoberta. Mas diz não encontrar nada. Nenhum pesquisador anterior a Baiocchi faz alusão explícita a qualquer existência de calungas em Goiás, muito menos a um quilombo com esta denominação, afirma o professor.

Luiz Palacin, referência em estudos históricos sobre o Estado, teria sido uma das fontes da professora. Mas ele não fala em calungas ou mesmo deste quilombo especial naquela região.

Trechos da tese

Estes moradores do Vale do Paranã revelavam, apesar de todo o processo de exclusão a que foram submetidos historicamente, ter uma consciência elementar do que queriam. Sabiam pedir tudo que precisavam, embora sem apresentar, por razões óbvias, um discurso mais elaborado. Na realidade, suas reivindicações não fugiam dos pleitos de outros grupos da região, quando forçados pelas circunstâncias a fazê-lo diante de alguma autoridade.Já pela metade dos anos 1980, com maior abertura e contato mais intermitente com a sociedade externa, eles já reclamavam, por exemplo, até mesmo, das contínuas visitas de pesquisadores universitários . Afinal, que tipo de gente eram os calungas? Negros? Sim. Pobres? Sim.Esquecidos pelas autoridades? Sim. Mas se no Brasil este fenômeno pode ser percebido em quase todas as regiões, o que os calungas tinham de especial?Certamente o fato de terem sido tratados como etnicamente especiais, quando, na realidade, sempre foram brasileiros comuns, como tantos outros na mesma situação. Agora, eles estavam se conscientizando de sua existência, dos seus problemas, de suas possibilidades e desafios Os calungas não eram e não são africanos perdidos num quilombo perto de Brasília. São camponeses brasileiros, de longínqua descendência africana, como a quase totalidade da população da região Nordeste de Goiás, nadivisa com o Estado da Bahia. Por esta divisa houve, historicamente, um grandeintercâmbio comercial, que remonta ao século 18: além do comércio, esta divisa serviu muito bem ao contrabando de ouro e para a entrada e saída de pessoas, negras ou não. Os calungas não tinham e não têm nenhum tipo de isolamento, que se possa atribuir a um possível estatuto étnico especial.Tudo tem a ver com a histórica exclusão, principalmente, do homem brasileiro do campo. São excluídos como o são vários outros grupos sociais, ali mesmo na região do Nordeste de Goiás e em outras regiões do Brasil Os calungas não precisam de quilombo para serem o que são. Se rejeitavam esta forma de nominação arbitrária, eles descobriram, em pouco tempo, que o termo pejorativo do passado era a única possibilidade de garantirem um pedaço de terra para viver. Eles estão, a cada dia, se habilitando com competência para o exercício dos seus direitos básicos, ainda de maneira precária, porque não conseguem percebê-los na sua amplitude. Já verificamoscomo se deu historicamente este processo. Este passo, rumo a uma consciência e a uma prática de cidadania só foi possível quando eles assumiram seu próprio discurso, fazendo da informação dos outros um instrumento de construção de seu próprio conhecimento Abordagem envolve conceitos de cidadaniaA tese do professor Joãomar Carvalho não é um confronto com a antropóloga Mari Baiocchi. Trata-se de estudo que envolve conceitos de cidadania e informação – linhas de pesquisa desenvolvidas no doutorado. É amplo o objeto de pesquisa: a informação dos excluídos. No centro da tese surge a experiência dos calungas. É aqui que os caminhos se chocam. O professor muda o enfoque da professora Baiocchi: escolhe um grupo das comunidades negras de Goiás para descobrir quando e como eles conseguem encontrar um rumo à cidadania através da informação. Ele não faz descobertas, nem constrói o personagem. Ao contrário: na rota para a construção de seu estudo, que investiga a cidadania e informação, ele precisou desconstruir um mito.Para isso, ele insere a descoberta dos calungas no redescobrir da democracia brasileira. O professor de jornalismo cita o contexto histórico propício para a inserção dos calungas nas discussões sociais: Além do fim de ditadura (1964-1985) e dos debates acalorados da Assembléia Nacional Constituinte (1987-88), comemorava-se também o centenário da abolição da escravatura (1888-1988). Em tempos de Constituição cidadã, com umacomunidade exposta aos veículos de comunicação receptivos, era possível abraçar uma causa mais pela crença do que pela realidade. Os calungas foram descobrindo, ao longo do tempo, a importância da informação. Esta descoberta começou a instaurar, por isso mesmo, um lento e gradual processo de aprendizagem política. Eles constataram que o fato de desconhecerem aspectos de sua própria vida poderia custar-lhes a paz, escreve o professor.

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