Movimento pede implementação de acordo sobre comunidades rurais
Ratificada pelo Brasil em 2002, convenção da OIT sobre povos indígenas e tribais não foi colocada em prática no país. Acordo garantiria às comunidades serem consultadas sobre seus interesses e participarem dos benefícios da exploração dos recursos de suas terras.
Embora o direito à terra das comunidades quilombolas esteja previsto na Constituição Brasileira de 1988, a titulação desses territórios vem sendo feita muito lentamente. No mais recente levantamento realizado pela Universidade de Brasília (UnB), foram registradas 2.228 comunidades no Brasil, mas o movimento quilombola estima que existam mais de 4 mil espalhadas pelo país. No entanto, até agora foram tituladas apenas 119 comunidades, em 61 territórios. Muitas estão em conflito pela posse da terra e ameaçadas de despejo.
Com o objetivo de discutir instrumentos legais para as lideranças do movimento quilombola e as entidades parceiras pressionarem o governo na regularização desses territórios, foi realizado, nesta terça-feira (17), o seminário “Convenção 169 da OIT e Direitos Quilombolas”, organizado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e pelo Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo. Uma das ferramentas que precisa ser mais explorada nesse sentido é a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, sobre Povos Indígenas e Tribais, pouco conhecida pelos advogados envolvidos na causa. Ratificada pelo Brasil em 2002, após onze anos em tramitação no Congresso Nacional, ela começou a fazer parte da legislação brasileira em 2003, após um ano de carência, mas até agora poucos aspectos da Convenção foram incorporados pelo país.
Está garantida nela, por exemplo, a consulta às comunidades em todos os assuntos que sejam do interesse dessas populações, tanto na adoção de políticas públicas para os quilombolas quanto em projetos que os atinjam diretamente. Isso serviria, por exemplo, para que as comunidades tivessem o poder de impedir de uma vez por todas a construção de uma barragem no rio Iguape, que ameaça inundar diversas comunidades no Vale do Ribeira, onde se encontra a maior parte das terras quilombolas do estado de São Paulo.
“Estamos lutando há 17 anos contra um consórcio de empresas que reúne Camargo Correa, Votorantim e Bradesco. Conseguimos algumas vitórias, mas ainda existe a ameaça”, conta Oriel Rodrigues, liderança da comunidade de Ivaporanduva, do Vale do Ribeira, que também faz parte da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). As remoções, que de acordo com a Convenção devem ser evitadas ao máximo, só podem ser efetuadas com o consentimento da população local. Isso não tem acontecido em vários casos e foi marcante em Alcântara, no Maranhão, de onde foi deslocada de suas terras ancestrais, desde a instalação do Centro de Lançamento Aeroespacial na região, em 1982, uma população de cerca de 30 comunidades.
Além disso, a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais protege o direito dos povos tradicionais aos recursos naturais existentes em suas terras e à participação dos benefícios da exploração deles. “Em Marambaia, no Rio de Janeiro, a Marinha utiliza a localização do quilombo para sua base; ela deveria pagar por isso. O mesmo vale para Alcântara. Deveriam ser repassados para os quilombolas recursos do aluguel com a Ucrânia, por causa da localização especial”, acredita o advogado Aton Fon Filho, diretor da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
O governo brasileiro incorporou algumas dessas determinações da Convenção no Decreto 4.887, de 2003, que regulamenta o processo de regularização das terras quilombolas. O decreto contou com a participação de representantes do movimento quilombola em sua elaboração, e incluiu o conceito da auto-identificação das comunidades, ou seja, agora são os próprios quilombolas que se reconhecem como tal.
Outra ferramenta que poderia ser utilizada pelo movimento quilombola é o plano diretor, previsto no Estatuto da Cidade, para regulamentar o uso e a ocupação do solo. O plano deve ser elaborado até 2006 pelos municípios com mais de 20 mil habitantes ou que estejam em região metropolitana, em área turística ou dentro de regiões para as quais existem empreendimentos de grande impacto, como a construção de uma hidrelétrica. “O movimento tem que entrar nessa luta para conseguir criar macro-zonas étnicas nas áreas de quilombos”, defende Thaís Choeire, advogada do núcleo de Direito à Cidade do Instituto Polis. Se estiver assegurado esse uso na legislação municipal, haverá uma garantia a mais para a segurança de posse das comunidades sobre suas terras.
Ainda que muitos entendam que a titulação dos quilombos precisa de uma legislação própria, por se tratar de uma questão étnica e não meramente fundiária, o procurador do Ministério de Desenvolvimento Agrário, Valdez Farias, defende que sejam utilizados os instrumentos já desenvolvidos para os trabalhadores sem-terra. Isso porque o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), responsável pelo processo de regularização dos territórios quilombolas, vem encontrando bastante dificuldade na questão da desapropriação, prevista no decreto. Para utilizar a legislação existente – como a desapropriação por interesse social genérico, possível até em imóveis produtivos – seria necessário ampliar o conceito atual de reforma agrária, de forma que incluísse o caso dos quilombos.
“Para implementar esse direito, é necessário um pouco de ousadia por parte do governo. Se continuar com essa interpretação restrita da Constituição e não propuser uma forma de executar isso, nem nossos netos verão a titulação acontecer”, diz Farias.