por Rosa Peralta
Às vésperas da 16a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa, que acontecerá no dia 17 de setembro, no Rio de Janeiro, é impossível não relembrar do brutal assassinato da liderança quilombola Mãe Bernadete
Maria Bernadete Pacífico, 72 anos, iniciada no candomblé e liderança da comunidade quilombola Pitanga dos Palmares, coordenadora da Conaq, ex-secretária de Políticas de Promoção da Igualdade Racial na cidade de Simões Filho (BA). Ela era nada menos que a Mãe Bernadete.
Desde 2017, ela buscava justiça pela morte de seu filho Flávio Gabriel Pacífico dos Santos, conhecido como o Binho do Quilombo, também assassinado a tiros no quilombo. Há dois anos, por decisão da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SJDH) da Bahia, ela estava sob proteção da Polícia Militar. No entanto, segundo o advogado da família, David Mendez, a proteção não era efetiva, já que se resumia a uma visita rápida uma vez ao dia.
Em julho deste ano, Bernadete chegou a participar de um encontro com a presidente do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber. Nessa ocasião, ela denunciou ameaças e atos violentos contra a sua comunidade por parte de grileiros e madeireiros, que tentavam extrair ilegalmente matérias prima da Área de Proteção Ambiental onde a comunidade está localizada.
Infelizmente, nem toda a sua garra, nem as denúncias e sua projeção na esfera pública pouparam a sua vida.
Apesar de as autoridades apontarem outros possíveis motivos para o assassinato de Mãe Bernadete, quem conhece a realidade do Brasil sabe que os conflitos pela terra e o racismo estão na raiz da violência e da impunidade que assolam as comunidades quilombolas em todo o país.
O retrato da violência contra comunidades quilombolas na Bahia
Segundo dados coletados pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, ao menos 30 quilombolas foram assassinados(as) nos últimos dez anos, 13 só na Bahia, o estado com maior presença quilombola do país, segundo o último censo do IBGE.
Mãe Bernadete não era a única quilombola do Estado sob o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos da SJDH da Bahia (PPDDH). Como revela matéria do Jornal Correio, 15 quilombolas de outros municípios baianos (Barra, Lauro de Freitas e Cachoeiras) integravam o programa.
A matéria traz um triste retrato da situação de tantas outras comunidades, vítimas de violência de opositores e da inação do Estado. Após um ataque armado por parte de posseiros que se dizem donos das terras, as famílias da comunidade de Igarité, localizada na cidade de Barra, Oeste Bahia, abandonaram o território temendo o pior. O ápice da violência no estado foi em 2017. Só naquele ano, oito quilombolas foram assassinados, incluindo o filho de Mãe Bernadete.
Nunca é demais lembrar o caso emblemático de outra comunidade quilombola em Simões Filho, mesmo município baiano da comunidade Pitanga dos Palmares: Rio dos Macacos, que há décadas tem sido palco de horrores. Em um conflito de quase 50 anos com a Marinha do Brasil, há relatos que vão desde restrições ao direito de ir e vir até roubo de hortas e espancamento. As famílias quilombolas e diversas organizações aliadas chegaram a encaminhar as denúncias de violações à ONU, à Organização Internacional do Trabalho (OIT) e à Organização dos Estados Americanos (OEA) em 2012.
Rio dos Macacos teve seu território titulado em 2020. A conquista, porém, vem com um sabor amargo, já que a comunidade teve que abrir mão de áreas que garantiriam o acesso a fontes de água. A comunidade continua a denunciar racismo e violências por parte dos membros da Marinha, além da ausência de serviços básicos. Durante um ato público do Presidente Lula em maio deste ano, a coordenadora da Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos, Rose Meire dos Santos Silva, conseguiu entregar uma carta “pedindo socorro” ao Presidente, como mais uma tentativa de chamar a atenção para o quadro de extrema vulnerabilidade das famílias.
Esse gesto é uma das provas de como as comunidades atingidas buscam resistir aos ataques de várias formas, criando alianças e interpelando as autoridades para fazer valer seus direitos. São várias denúncias encaminhadas a Delegacias, Defensorias Públicas, Ministério Público, governos em nível local, estadual ou federal e até organismos internacionais. E Mãe Bernadete também é um exemplo dessa mobilização intensa que clama por justiça, mas que, diante da inércia do poder público, muitas vezes resulta em mais violência e morte.
Cortina de fumaça
Assim que o assassinato de Mãe Bernadete foi veiculado, o Governador da Bahia, Jerônimo Rodrigues, acionou suas secretarias de segurança pública, de justiça e direitos humanos e de igualdade racial, a Polícia Civil e Militar, assim como se comunicou com a Ministra do STF, Rosa Weber, e o Ministro de Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino. Uma comitiva do governo federal, com representantes do Ministério da Igualdade Racial, desembarcou na Bahia para apurar os fatos. O Governador também procurou o Incra, que seis dias após o crime tomou a medida de notificar 44 ocupantes não quilombolas, um dos atos que integra o procedimento de regularização fundiária de territórios quilombolas. No dia 30 de agosto, a Presidente do Conselho Nacional de Justiça e do STF, a Ministra Rosa Weber, anunciou que os assassinatos de Mãe Bernadete e de seu filho Binho serão acompanhados pelo Observatório das Causas de Grande Repercussão, formado pelo CNJ e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
É lamentável que seja preciso ocorrer algo assim tão grave para que as autoridades se mobilizem. Esperamos que a regularização do quilombo finalmente se concretize. Infelizmente, Mãe Bernadete e seu filho Binho não estão mais entre nós para ver essa justiça sendo feita.
Ainda mais lamentável é a insistência em dissociar os crimes cometidos contra as comunidades quilombolas dos conflitos pela terra. O caso da comunidade Pitanga dos Palmares consta do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, da Fiocruz. Ali é relatado o histórico de projetos e afetações a que a comunidade foi submetida ao longo dos anos. Apesar de todos os episódios e fatos narrados, a Polícia Civil considera como tese principal do assassinato de Mãe Bernadete a guerra de facções.
Ao desviar a atenção da sociedade da motivação principal, que é o avanço sobre as áreas quilombolas, mais uma vez o Estado cria uma cortina de fumaça, em que se exime de sua responsabilidade em regularizar os territórios e enfrentar os interesses de grupos com maior capital econômico e político.
Segundo o Conselho Estadual das Comunidades Quilombolas da Bahia, existem no estado cerca de 1.500 comunidades, sendo que o Governo Federal certificou 937 comunidades e apenas 22 comunidades tituladas, sendo que cinco delas de forma parcial.
O Governo Bolsonaro foi nefasto para a política quilombola, é verdade. Mas é importante sempre lembrar que o processo de desmantelamento dos instrumentos de regularização fundiária desses territórios, por meio do aumento da burocratização e cortes orçamentários, data de governos anteriores. Na Bahia, isso ainda é mais problemático, já que é a terceira gestão petista no estado sem sinal de melhora da situação de vulnerabilidade dos territórios e famílias quilombolas.
Enquanto isso, dias depois do assassinato de Mãe Bernadete, os jornais anunciaram que a família Pacífico deixou a comunidade de Pitanga dos Palmares, mostrando que a impunidade é a regra, que o crime compensa e que a política de extermínio do povo negro, seja pela sua raça, gênero, etnia ou religião, não tem data para acabar.
Que o ato em Defesa da Liberdade Religiosa no próximo dia 17, exatamente um mês após a execução de Mãe Bernadete, seja um momento de celebração, comunhão e reflexão do sobre o tanto que há para se caminhar para obter justiça.