Saberes ancestrais: dois pesos e duas medidas

Na última semana acompanhamos mais uma demonstração de como a estrutura estatal opera para manter o status quo, no que tange à valorização dos saberes tradicionais. Refiro-me à publicação e imediata revogação da Resolução Conjunta SMAC/SMS nº 02 de 18 de março de 2025 que “reconhece as tradições de origem e influência africana como práticas integrativas complementares ao SUS na cidade do Rio de Janeiro.”  Ela foi publicada no Diário Oficial do Rio de Janeiro no dia 19 de março e já no dia 26 de março cancelada pelo Prefeito. Mas de onde veio a ousadia dessa portaria?

Essa portaria se embasou na Resolução nº 715, de 20 de junho de 2023, que traz orientações para os estados e municípios, oriundas da 17ª Conferência de Saúde, que aponta que é necessário:

“(Re)conhecer as manifestações da cultura popular dos povos tradicionais de matriz africana e as Unidades Territoriais Tradicionais de Matriz Africana (terreiros, terreiras, barracões, casas de religião, etc.) como equipamentos promotores de saúde e cura complementares do SUS, no processo de promoção da saúde e 1ª porta de entrada para os que mais precisavam e de espaço de cura para o desequilíbrio mental, psíquico, social, alimentar e com isso respeitar as complexidades inerentes às culturas e povos tradicionais de matriz africana, na busca da preservação, instrumentos esses previstos na política de saúde pública, combate ao racismo, à violação de direitos, à discriminação religiosa, dentre outras”.

Em resposta a isso, no município do Rio de Janeiro, as secretarias de Meio Ambiente e Clima e de Saúde em trabalho conjunto usaram suas atribuições para reconhecer a ação destes espaços religiosos na resolução nº02, publicada em 19 de março, como indica a orientação da Resolução 715.  Mas, após seis dias o Prefeito do Rio de Janeiro revoga esta resolução alegando:

“A Prefeitura do Rio informa que a resolução conjunta das secretarias de Meio Ambiente e Clima (SMAC) e Saúde (SMS) foi revogada, em 25/03, no Diário Oficial, com o entendimento de que saúde pública é realizada baseada em ciência. Além disso, a revogação parte do princípio de que o Estado é laico e não deve misturar crenças religiosas em políticas públicas de saúde.”

Não é de hoje que a ciência é utilizada para desqualificar os saberes ancestrais dos povos não brancos. Não é de hoje que negam nossos direitos alegando cumprimento de leis e a utópica igualdade entre todas as pessoas. Foto: Acervo/KOINONIA


Não é de hoje que a ciência é utilizada para desqualificar os saberes ancestrais dos povos não brancos. Não é de hoje que negam nossos direitos alegando cumprimento de leis e a utópica igualdade entre todas as pessoas. Equidade é tratar os diferentes de forma diferente e respeitar as práticas de saúde dos saberes ancestrais dos povos de matriz africana é fazer isso. Por que razão práticas de saúde de origem oriental, como Reiki e ayurveda, são aceitas e  as práticas de origem africana como benzimentos e banhos não? O que diferencia o Reiki de um benzimento? O que diferencia os banhos de ervas da ayurveda? Todas são práticas integrativas adotadas há milhares de anos por povos diferentes com comprovados resultados para a saúde física e mental. Portanto, o que diferencia a incorporação das práticas de matriz africana pelo SUS é apenas o racismo.

A resolução que foi revogada previa respeito as práticas de saúde de povos que são amplamente combatidos. No trabalho de KOINONIA, acompanhamos diversos casos de sacerdotisas e sacerdotes que não conseguem cuidar de seus filhos quando estão internados em espaços de saúde, quando sabemos que padres e pastores podem circular livremente no apoio espiritual de membros de suas comunidades. Reconhecer os espaços sagrados e práticas ancestrais como promotores de saúde é afirmar que é possível cuidar a partir de outro ponto de vista, de uma forma mais integral e sim, reconhecendo outros saberes milenares.

A revogação deste passo, que seria um avanço nas disputas para fazer valer o direito à saúde e ao cuidado integral, é novamente construir muros para o avanço da superação do racismo que é base do pensamento e das práticas do Estado Brasileiro. Mas a gente é craque em quebrar muros, em criar pontes e em abrir outros caminhos. Seguimos na promoção de cuidado e saúde como sempre fizemos em nossos terreiros.

Ana Gualberto
Diretora Executiva de KOINONIA
Militante contra o racismo

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