Um ano após assumir a Presidência, o Governo Lula precisa tomar mais ações concretas para responder aos compromissos assumidos com as comunidades quilombolas
Por Rosa Peralta
Titulações raras e incompletas
Neste terceiro mandato, foram entregues títulos de seis terras quilombolas, mas que representam apenas uma parcela delas. Brejo dos Crioulos, em Minas Gerais, por exemplo, tem seu território decretado há mais de uma década. Agora, com os três títulos expedidos pelo Governo Federal em 2023, atingiu apenas 13 ,25% do total reconhecido oficialmente, ou seja, 2.292 dos 8.125 hectares a que as famílias têm direito. Já o título expedido à comunidade Curral da Pedra, na Bahia, representa apenas 52,60% do total do território quilombola.
Em comparação com o governo anterior, houve avanços, já que em quatro anos Bolsonaro entregou apenas três títulos, e somente por pressão judicial. No entanto, é preciso reconhecer que os resultados estão aquém do esperado. No último 20 de novembro, o Governo Federal entregou apenas dois títulos: um à comunidade Ilha de São Vicente, no Tocantins, e outro à comunidade Lagoa dos Campinhos, em Sergipe, também parciais. A expectativa, porém, era alta para o Dia da Consciência Negra.
É o caso da comunidade de Alto da Serra do Mar, no Rio de Janeiro, que esperava ser agraciada com o título. Desde 2016, a comunidade conta com a portaria assinada pelo Presidente do Incra, uma das etapas finais do processo de regularização fundiária, mas o processo estagnou. Em setembro de 2022, o Ministério Público Federal entrou com ação contra o Incra e a União que buscava “reverter a inércia” do poder público para concluir o processo, mas a titulação até o momento não tem data para acontecer.
Estados são mais eficientes
Segundo levantamento da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), os governos estaduais avançaram mais no quesito titulação. O estado do Pará titulou 14 territórios, enquanto no Maranhão foram beneficiadas três comunidades e pelo menos duas no Piauí. Infelizmente, não são todos os estados da federação que contam com uma política própria de regularização fundiária, restando a mais de 1.800 comunidades esperar e resistir à morosidade e à burocracia da autarquia federal. Isso sem falar nas mais de 6.000 comunidades identificadas pela CONAQ, muitas delas que não iniciaram com processos abertos no Incra.
Intenções não se traduzem em ações
O número insuficiente de pessoal dedicado ao tema, a falta de recursos para pagamento de indenizações de ocupantes não quilombolas e o desmonte promovido pelo Governo Bolsonaro também são razões constantemente evocadas para justificar o parco número de titulações. No entanto, a série histórica de análises do Inesc e outras organizações da sociedade civil acerca do orçamento e implementação das políticas quilombolas nos permite identificar que esses fatores que atravancam os processos refletem uma postura política ambígua por parte dos mandatos petistas, que em suas gestões de governos de coalizão atuam em uma correlação de forças estruturalmente desfavorável aos direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais, versus interesses extrativistas, de especulação de terras e agroexportadores. Afinal, desde 2005, mas sobretudo a partir do segundo mandato de Lula, a tendência dos sucessivos governos tem sido de baixa execução dos recursos previstos e de não respeito ao direito à consulta e à autodeterminação das comunidades quando se trata de mudanças legislativas e projetos de interesse do governo.
Pontos positivos
A segurança da posse da terra é condição fundamental para a reprodução física, social, econômica, cultural e ambiental das comunidades quilombolas e, portanto, pauta prioritária do movimento. Ainda que em número de titulações o atual Governo tenha muito que responder, não podemos deixar de mencionar avanços. Neste primeiro ano de seu mandato, o Incra publicou 12 Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID), etapa mais longa em que as dimensões dos territórios são oficialmente estipuladas. Segundo dados levantados pela CPI-SP, somente 17% terras quilombolas avançaram até essa etapa.
Também foram assinadas pela Presidência do Incra 52 portarias declaratórias, último estágio de identificação dos limites das terras quilombolas, mas que ainda não confere o registro do título definitivo em cartório. Até lá, os processos podem tomar diferentes caminhos.
Em 20 de novembro, o movimento quilombola também comemorou o lançamento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental Quilombola (PNGTAQ), estruturada em cinco eixos: I – integridade territorial, usos, manejo e conservação ambiental; II produção sustentável e geração de renda, soberania alimentar e segurança nutricional; III ancestralidade, identidade e patrimônio cultural; IV – educação e formação voltadas à gestão territorial e ambiental; e V – organização social para a gestão territorial e ambiental.
A PNGTAQ é fruto de muitos anos de trabalho e intensa participação de representantes quilombolas. Começou a ser elaborada em 2013, mas com o golpe no Governo Dilma, ficou engavetada. Trata-se de uma conquista do movimento e a expectativa é grande para as milhares de comunidades que se viram pois prevê desde o apoio a processos de regularização fundiária; a mediação e resolução de conflitos pela terra; a ampliação de políticas de conservação ambiental e de incentivo ao desenvolvimento sustentável até proteção de locais sagrados e fortalecimento das práticas tradicionais de cuidado em saúde.
Abrange, portanto, demandas históricas que vão além de garantir o título. Cabe ressaltar que algumas das ações ficam restritas a comunidades tituladas ou que tenham pelo menos seus limites definidos pelo RTID.
Para comunidades tituladas como a da Ilha da Marambaia, a política representa um novo sopro de esperança. Após a titulação em 2015, concretizada por meio de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) firmado entre a associação quilombola, o Ministério Público Federal e a Marinha do Brasil, a comunidade ainda não tem acesso a políticas públicas básicas fundamentais para a manutenção das famílias na ilha.
Como em anos anteriores, o presidente Lula esteve na ilha para passar o Réveillon, mas desta vez foi à comunidade e fez um vídeo em que se mostra disposto a ouvir e atender as demandas. Durante a visita, a Associação dos Remanescentes do Quilombo da Ilha da Marambaia (Arqimar) entregou uma carta elencando os pontos mais prementes, como transporte aquaviário, ensino médio e posto de saúde na comunidade na comunidade. Além disso, pleiteiam a revisão dos limites territoriais, já que a área definida pelo TAC restringe a prática de agricultura familiar e, com a maré avançando devido às mudanças climáticas, a construção de novas casas. Será importante continuar a acompanhar as iniciativas dos quilombolas e os respectivos encaminhamentos.
Contradições na agenda climática
Em plena 28a Conferência do Clima da ONU, o Governo Lula anunciou a entrada do Brasil como país observador na ala expandida da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+), que envolve grandes produtores de petróleo mais os seus aliados.
A decisão recebeu duras críticas por ser contraditória em relação ao papel de liderança do Brasil em outros temas.
Segundo o Governo, a entrada para a OPEP+ servirá de oportunidade para influenciar os países produtores de petróleo da importância de fazer investimentos para a transição energética. Porém, no dia seguinte ao fim da Conferência do Clima, o Brasil deu nova demonstração de que não tem intenção de acelerar a saída dos combustíveis fósseis. No dia 13 de dezembro, a Agência Nacional do Petróleo ofertou mais de 600 novas áreas de exploração de petróleo, com impactos sobre unidades de conservação, incluindo a Bacia do Rio Amazonas, e comunidades tradicionais em diversas partes do país, o que lhe conferiu o apelido de Leilão do Fim do Mundo.
Além disso, vale lembrar que se acumulam as denúncias de violações engendradas por projetos de energia renovável. Em vez de conferir autonomia energética para as comunidades locais, a energia gerada por esses projetos é repassada para concessionárias, que lucram com a vende a preços elevados à própria população atingida.
Violência crescente
Em novembro, a CONAQ e a Terra de Direitos lançaram o estudo Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil, no qual apontam que a média anual de assassinatos de quilombolas dobrou entre 2018 e 2022 em relação às mortes entre 2008 e 2017. Foram 32 assassinatos em 11 estados, cujas principais causas foram conflitos fundiários e violência de gênero.
Os números de 2023 não foram contabilizados na pesquisa, mas um levantamento preliminar já registrou sete mortes.
No próximo dia 21 de janeiro, celebra-se o Dia do Combate à Intolerância Religiosa. É uma data em que inevitavelmente lembraremos do assassinato brutal da liderança quilombola e religiosa Mãe Bernadete. A conclusão das investigações da Polícia Civil é de que Mãe Bernadete teria sido morta como ato de represália de traficantes de drogas que atuam na região. No entanto, Mãe Bernadete denunciava incessantemente interesses de grupos poderosos na extração ilegal e na instalação de um aterro de inertes em seu território, sem mencionar que o assassinato de seu filho, Flávio Gabriel Pacífico, em 2017, continua impune.
Seria, portanto, no mínimo desonesto ignorar que muitos se beneficiaram da morte dela e que tantos outros conflitos ainda ameaçam a comunidade. Após sucessivos atos de violência, a “resolução” desse crime não reduz em nada a urgência de proteger e, sobretudo, titular os quilombos do Brasil. Infelizmente, a data para a titulação do território de Pitanga dos Palmares, assim como de tantas outras comunidades, continua uma incógnita.
Rumo à COP 30, em Belém
Cabe ressaltar, no entanto, que, embora a titulação seja a prioridade, as comunidades não conseguirão garantir a manutenção de seus territórios se o governo seguir com sua política de coalizão e concessões a interesses opostos, como de incentivo desmesurado ao modelo agroexportador, de expansão da exploração de petróleo e gás, de projetos de energia renovável que violam direitos das comunidades tradicionais, entre outros. Assim, se com uma das mãos o governo defende Povos e Comunidades Tradicionais, comprovadamente os melhores guardiões da Natureza, com a outra tira a sua capacidade de existência.
Até a COP 30 que será realizada em Belém em 2025, será preciso muita mobilização e articulação da sociedade civil para fazer valer os direitos historicamente violados. Entre várias demandas, sigamos cobrando nada mais que coerência do Governo Lula.