Por Pedro Rebelo
Dizem que o carnaval tem origem na Saturnália romana em devoção ao deus Saturno, pelo menos uns cinco séculos antes da Era Cristã. Se é verdade ou só ilusão, por aqui o dono da festa é Exu. É ele quem abre as portas da Sapucaí para nela desfilar Orixás, Voduns, Inquices, Caboclos, Pretos Velhos, Erês, Encantados, Malandros, Ciganos, Boiadeiros, Povo de Rua e todo universo cosmológico afro-ameríndio. Nas redes e nas ruas, intelectuais, artistas, políticos e populares foram certeiros ao avaliar que este foi o carnaval mais africanizado de todos os tempos.
A vitória da Grande Rio é a vitória contra o racismo religioso que tem em Exu a figura mais demonizada pela branquitude. “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu” trouxe para a avenida as muitas faces de Exu e sua amplitude cosmológica presente na espiritualidade marginalizada dos lugares segregados. Assim foi aberto o carnaval da Grande Rio, com a representação de Exu Orixá em meio ao Lixão de Gramacho (o maior aterro sanitário da América Latina, hoje desativado).
Neste local improvável residia a figura de Estamira, catadora de lixo que se comunicava com Exu através de um telefone achado no lixo. “Câmbio, Exu! Fala Majeté!” Assim, Estamira abria a conexão de um telefone cuja linha nenhuma empresa de telefonia jamais cobriu…Estamira era considerada doente mental, mas seu discurso fazia em muitos momentos nossa sociedade ser questionada sobre sua concepção acerca da loucura. Quem sabe Exu já não tinha cantado a pedra da vitória da Grande Rio em 2022, e atingido em cheio as ligações com Estamira em 2004. Afinal, foi Exu quem acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. E nada melhor que samba para servir como fio condutor dos muitos caminhos de Exu.
O samba é, sem sombra de dúvida, uma das maiores produções da negritude. Talvez por isso tenha sido frequentemente perseguido e disputado pela branquitude. A retomada da africanidade no centro do carnaval é reflexo de muita luta ao longo dos anos.
Nos anos 1930, as primeiras escolas de samba começam a reorganizar a imagem do carnaval carioca, quando os desfiles começam a integrar a agenda foliã da então capital. Em poucas décadas a festa serviria de aparato do Estado Brasileiro para a glorificação do regime político. No Estado Novo, os sambas que não enalteciam a pátria sofriam punições, tal como a Prazer da Serrinha (atual Império Serrano) que, ao desfilar com temática de terreiro, se viu com as piores notas do carnaval de 1939. Dez anos depois, a Império Serrano imortalizava o samba “Exaltação à Tiradentes”, no governo Dutra, em ocasião dos 160 anos da Inconfidência Mineira.
Nos anos do regime militar, a censura foi constante nos barracões e cabe aqui destacar as resistências que o samba proporcionou com o enredo do Salgueiro, às vésperas do AI-5, com o tema “História da Liberdade no Brasil’‘, e foi acompanhado por agentes do Dops em pleno carnaval de 1967. Em 1969 Silas de Oliveira entrou para a História com o samba enredo do Império Serrano, “Heróis da Liberdade”, sofrendo censura na letra do samba com a substituição da palavra revolução para evolução.
Somente a partir dos anos 1970 as escolas conseguem retomar com mais força sua africanidade. É a partir deste período que ganham destaque temas como: “Bahia de todos os deuses” (Salgueiro 1969), “Festa para um Rei Negro” (Salgueiro 1971), “Lendas do Abaeté” (Mangueira 1973), “Criação do mundo na tradição Nagô” (Beija-Flor 1978).
Nos anos 1980 a inauguração do Sambódromo, sob muitas polêmicas envolvendo o governo Brizola e o posicionamento contrário da mídia capitaneado pela Rede Globo, deu origem a um novo período no carnaval carioca, com sambas memoráveis como “Kizomba, a festa da raça”, que sagrou a Vila Isabel campeã em 1988, no centenário da Lei Áurea, e “100 anos de liberdade: realidade ou ilusão?”, apresentado pela Mangueira no mesmo ano.
As críticas sociais se consolidaram no mundo do samba quando “Ratos e Urubus, larguem a minha fantasia” entrou para a História como um dos carnavais mais polêmicos, quando Joãosinho Trinta desafiou a Diocese do Rio e, sob protestos, cobriu o “Cristo mendigo” com a emblemática frase “Mesmo proibido rogai por nós”, defendido pela Beija-Flor no carnaval de 1989. No ano em questão, a escola campeã foi a Imperatriz Leopoldinense com o samba “Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”, enaltecendo o centenário da República e dando destaque à figura da Princesa Isabel, hoje revisto pelas escolas e pela própria História.
A tendência revolucionária de Joãosinho Trinta deu o tom dos carnavais da década de 1990 com qualidade técnica incontestável, a exemplo da Viradouro em 1997, que venceu o carnaval com um dos desfiles mais emblemáticos da História – “Trevas! Luz! A explosão do Universo.”
Já nos anos 2000 a mudança econômica sofrida pelas escolas com o deslocamento de investimentos do jogo do bicho para os recursos obtidos de empresas e governos deu ao carnaval carioca um tom puramente mercantil e um modelo excludente de disputa que dividiu o carnaval entre o Grupo Especial, midiático, e as escolas dos Grupos de Acesso que, tanto no Sambódromo como na Intendente Magalhães, mantiveram vivos os laços do samba com sua africanidade e religiosidade de terreiro.
Deste modo, os anos 2010 foram marcados pelos carnavais hi-tech protagonizados por Paulo Barros, ao passo que as escolas menores seguiram seus carnavais mais “analógicos”, de poucos recursos e muita fé, muitas vezes prejudicados pelo avanço neopentecostal em suas comunidades, proporcionando um esvaziamento significativo em importantes alas, como a das Baianas.
A reviravolta histórica de 2022 não fala por todo o carnaval, afinal o carnaval africanizado nunca deixou de existir, mas deixa dado o recado de que as grandes escolas são, sim, agentes de resistência. Pouco antes da pandemia já víamos um ensaio a este retorno do carnaval protesto por parte das grandes escolas, a exemplo de “Os filhos abandonados da Pátria que os pariu” (Beija-Flor, 2018), “Meu Deus, Meu Deus! Será o fim da Escravidão?” (Paraíso do Tuiutí, 2018), “História para Ninar Gente Grande” (Mangueira, 2019). No entanto, parece que tudo seguia em um ritmo ainda muito acadêmico e branco com fetiche em Orixá, oriundos de uma intelectualidade que descobrira há pouco o poder do carnaval. Faltava algo mais e 2022 trouxe o que faltava.
A pandemia foi e tem sido cruel com muita gente, em especial com quem sobrevive do carnaval. O fundamentalismo religioso tem avançado não somente sobre os terreiros, mas também sobre os barracões das escolas de samba. E em momentos de tantas incertezas, medos e lutas, a fé e a ancestralidade apontam os caminhos da resistência.
Este ano a religiosidade afro-brasileira e a ancestralidade deram o tom do carnaval de ponta a ponta. Contando com a Série Ouro e o Grupo Especial, 22 escolas falaram de Orixás e de sua própria ancestralidade e negritude na Marquês de Sapucaí.
Na Série Ouro tivemos:
Cubango: Chica Xavier
Porto da Pedra: Mãe Stella de Oxóssi
União da Ilha: Nossa Senhora Aparecida
Lins Imperial: Mussum
Inocentes de Belford Roxo: Noite dos Tambores Silenciosos
Santa Cruz: Milton Gonçalves
Unidos de Padre Miguel: Iroko
Vigário Geral: Pequena África
Império da Tijuca: Quilombos
Império Serrano: Besouro Mangangá
No Grupo Especial:
Mocidade Independente de Padre Miguel: Oxóssi
Grande Rio: Exu
Mangueira: Cartola, Jamelão e Delegado
Salgueiro: Djalma Sabiá e a resistência negra
Beija-Flor: Cabana e intelectualidade afro
Paraíso Tuiuti: Ícones negros
Portela: Baobá
Vila Isabel: Martinho da Vila.
O Rio de Janeiro produziu um belíssimo carnaval preto com Exu no topo do mundo, campeão do carnaval do Grupo Especial com a intelectualidade afro da Beija-Flor como vice-campeã. A Grande Rio fez jus, se sagrou campeã com Exu 30 anos depois de ter subido para o Grupo Especial com um samba que dizia: “Para os ocultos opressores da nação,há de vir um negro rei, para purificar…” E não há dúvidas de que Exu é Rei!
A Série Ouro também venceu com outra face de Exu: Besouro Mangangá, defendido pela Império Serrano que, no próximo ano, estará nas cabeças do carnaval carioca. Também emplacou no vice-campeonato a Porto da Pedra, que trouxe para a avenida a grandiosa Mãe Stella de Oxóssi, hoje ancestral, e filha dileta de Oxóssi, irmão e parceiro de Exu.
Como bem disse a jornalista Flávia Oliveira em sua coluna de Opinião no Jornal O Globo: “É ano do bicentenário da Independência, que não rendeu enredo a ninguém. Está dado o recado.”