Camila Chagas Advogada Graduanda em Ciências Sociais (UFBA) Mediadora de Conflitos e Educadora Popular
A sociedade brasileira foi construída a partir do trabalho escravo. Não obstante o dia 13 de maio de 1888 ter sido colocado no calendário como o dia da abolição da escravatura, em razão da Lei nº 3.353, sancionada pela Princesa Isabel, seria muita ingenuidade pensarmos que a atitude da princesa seria um ato de benevolência. Em verdade o ato praticado buscava atender a pressão da Inglaterra de por fim ao tráfico negreiro e assim expandir seu mercado consumidor. Vale recordar que, neste período, a máquina a vapor impulsionava a produção de mercadorias. Estas, por sua vez, precisavam de compradores: a abolição seria um dos efeitos da reverberação da Revolução Industrial no Brasil. Desde o sequestro da África, os escravizados resistiram através de levantes, fugas e formação de quilombos. Estes representavam também uma nova forma de organização social e relação com a natureza. A legislação vigente à época proibia a aquisição de terras devolutas por outros meios que não fosse a compra, tal como reza o artigo 1º da Lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, mas permitia a entrega da mesma aos colonos estrangeiros, dentre outras medidas racistas. A abolição não trouxe nenhuma medida de reparação, ao contrário, deixava os contornos do racismo ainda mais delineados. Ao longo da história podem ser verificadas diversas normas utilizadas como instrumentos de opressão e criminalização dos negros que vão desde contravenção penal de mendicância, capoeragem, vadiagem à necessidade autorização da Delegacia de Jogos e Costumes para o funcionamento dos terreiros de Candomblé. De outra ponta, instrumentos normativos como a Convenção 169 da OIT tiveram papel de relevo na defesa dos direitos das comunidades negras tradicionais. No entanto, atualmente, o que se vê são retrocessos nas políticas públicas e mecanismos de proteção destes direitos. A Constituição Federal de 1988, nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, garante o direito à terra as comunidades remanescentes de quilombo: Art. 68 ADCT Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhe os títulos respectivos. No que tange a autoaplicabilidade deste dispositivo, a 6ª Câmara do Ministério Público Federal, por meio do grupo de trabalho sobre Quilombos, Povos e Comunidades Tradicionais, através do parecer lavrado pelo Dr. Walter Claudius Rothenburg apresentou seu posicionamento reconhecendo a aplicabilidade imediata da norma que possui eficácia jurídica plena, uma vez que seu conteúdo reconhece um direito e atribui um dever específico de atuação do poder público. De acordo com o parecista, a localização da norma nas disposições transitórias denota a necessidade de aplicação imediata, uma vez que está inserida no sistema de transição entre sistemas constitucionais e possuem normatividade suficiente. Nesse sentido, compreende que o artigo 68 ADCT consagra diversos direitos fundamentais, como o direito a moradia e a cultura de modo que aspectos específicos relacionados ao âmbito concreto e ao âmbito administrativo não criam direitos e deveres externos, apenas regulamentam a atuação estatal, por isso não precisa de lei que a regulamente e ainda que assim não fosse, para satisfazer o princípio da legalidade, existe um arcabouço legislativo que sustenta a aplicação do decreto 4.887/2003. Seu posicionamento é amparado no magistério de José Afonso da Silva e Daniel Sarmento. O Decreto 4883/03 regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Valioso trazer este posicionamento, uma vez que o reconhecimento deste direito, mesmo havendo texto expresso na Constituição Federal, ensejou a Ação Direita de Inconstitucionalidade, ADI 3239, ajuizada pelo Partido da Frente Liberal – PFL, atual Democratas – DEM, no ano de 2004. Em fevereiro de 2018 foi julgada improcedente por oito ministros do Supremo Tribunal Federal. Segundo dados da Agência Brasil, menos de 7% (sete por cento) das áreas quilombolas no Brasil foram tituladas, fato que contribui para o acirramento dos conflitos e mortes por causa da terra. Salienta-se que as comunidades remanescentes de quilombo ocupam a terra de forma ancestral e nela exerce ocupação pacífica. O conflito reside no interesse de terceiros em se apropriar da terra para finalidades diversas e a omissão do estado em fazer a regularização de territórios quilombolas. No dia 08 de maio de 2020, o Sr. Antonio Correia dos Santos, liderança do Quilombo do Barroso, localizado no município de Camamu-Ba, foi assassinado. Até o presente momento não foram identificado os autores do crime. O Sr Antônio era uma pessoa muito querida na região, não possuía inimigos. Ele morreu defendendo os direitos da comunidade quilombola Barroso que está sofrendo com conflitos de terra e que esperam a conclusão do processo de titulação de suas terras. Quantos Antonios serão assassinados até que o Estado honre o compromisso firmado na Constituição? Vidas negras importam!