Daniela Yabeta
Professora do Departamento de História (UNIR-PVH)
Editora do Observatório Quilombola
Eu tenho uma história com a região norte do Brasil que começa muito antes da minha chegada ao estado de Rondônia. Hoje eu vou contar, de forma bem resumida, como o Real Forte Príncipe da Beira – uma fortaleza construída no coração da Amazônia pela Coroa portuguesa (Século XVIII), ocupa um “lugar de memória” na trajetória da minha família. Meu avô Milton Vale de Morais, nasceu em 26 de junho de 1922 em Belém do Pará. Aos 18 anos ele entrou para o Exército (1940) e aos 22 anos (1944), serviu no Forte Príncipe da Beira, localizado no então recém criado Território Federal do Guaporé – Decreto Lei nº 5812 de 13 de setembro de 1943. Foi nessa mesma época que ele conheceu minha avó, Olga Solano de Yabeta – uma jovem boliviana nascida em 25 de dezembro de 1928 na cidade de Trinidad, localizada no Departamento do Beni. Ela morava na outra margem do rio Guaporé e, certo dia, acompanhada de alguns amigos, resolveu cruzar a fronteira entre os dois países e conhecer a fortificação brasileira. Foi assim que ela e meu avô se viram pela primeira vez. Dessa união, nasceram 10 filhos, 14 netos e 5 bisnetos. Meu avô nos deixou em 09 de maio de 1996, minha avó segue firme como o grande sustentáculo da família no auge dos seus 91 anos. Desses dez filhos, metade nasceu no norte do Brasil e a outra metade no Rio de Janeiro, pois meu avô foi transferido para cidade maravilhosa por volta de 1955, não sei o ano exato. Eu nasci na década de 1970, quando a família já estava enraizada e habituada ao modo carioca de se viver, sou filha desse momento. No entanto, as lembranças, as comidas e os costumes de um passado que remetia ao norte do Brasil, insistiam em permanecer. No quintal da nossa casa, localizada no subúrbio de Irajá, tinha pé de açaí e pupunha. Provei tacaca pela primeira vez quando era criança e a tapioca sempre esteve no nosso cardápio muito antes da moda fitness. Eu também ouvia histórias, a maioria delas contadas pela minha avó. Ela viveu uma infância cercada pela magia proveniente do que hoje eu entendo ser a Amazônia boliviana: cobras, onças e espíritos da floresta são apenas alguns exemplos que permaneceram na minha memória. Sempre tive uma imaginação brilhante, mas nunca passou pela minha cabeça que um dia eu viveria tão próxima desses seres encantados e tão distante fisicamente dela. Entre essas recordações, o Forte Príncipe da Beira – localizado hoje no que corresponde ao município de Costa Marques (RO),é descrito pela minha família, como umlocal romântico que proporcionou a união desses dois jovens de nacionalidades diferentes. Uma memória que ignora toda a vocação do forte para a garantia do território e controle das fronteiras. Essa semana, ao preparar minha aula para o curso de História do Brasil Colônia, lembrei novamente do forte ao ler o texto “Poder político e administração na formação do complexo atlântico português (1645-1808)” da historiadora Maria de Fátima Silva Gouvêa – constante no livro “O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (Séculos XVI – XVIII)”, organizado em 2001 por João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho e a própria Maria de Fátima. No texto, ao tratar da construção de uma governabilidade na América portuguesa, Gouvêa destaca a carta régia de 26 de outubro de 1645, que determinou a elevação do Estado do Brasil à condição de “Principado”. Através de uma nota explicativa – que está na página 293, consta que D. João V (1689-1750) criou em 1734, o título de princesa da Beira para sua neta D. Maria Francisca Isabel (1734-1816), a futura rainha D. Maria I, nascida naquele mesmo ano. De acordo com Gouvêa, esse título foi concebido para destacar a posição de possível herdeira do trono enquanto seus pais não tivessem um filho homem. Em 1761 nasceu José (1761-1788), primogênito de D. Maria I. Por ocasião de seu nascimento, ele também recebeu de seu avô – D. José I (1714-1777) o título de “Príncipe da Beira”. O nome do forte foi em homenagem ao infante, que faleceu prematuramente de varíola aos 27 anos. Sobre a construção da fortificação, encontrei na Revista Labirinto o texto do historiador Silvio Melo do Nascimento intitulado “Real Forte Príncipe da Beira: História e estórias do imaginário popular no Vale do Guaporé” (2013). De acordo com Nascimento, o Forte Príncipe da Beira começou a ser construído em 1776, por ordem de D. José I, como já foi dito no parágrafo anterior. Por outro lado, com relação ao contexto da construção, a arqueóloga Louise Cardoso de Mello, no texto “O Forte Príncipe da Beira como patrimônio afro-amazônico: arqueologia comunitária e resgate patrimonial” (2019), destaca que a fortaleza foi erguida no século XVIII num momento de disputa de fronteiras entre os reinos de Portugal e Castela. Além de assegurar o território, o forte tinha também o objetivo de controlar o contrabando que acontecia entre as duas margens do rio Guaporé. No século XIX, o forte passou por um processo de progressivo abandono, conforme destaca o historiador Lourismar da Silva Barroso em sua dissertação “Real Forte Príncipe da Beira: ocupação oeste da Capitania de Mato Grosso e seu processo construtivo -1775/1783” (2015). Chegando ao século XX, ocorre a redescoberta do forte pelo marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958). Na década de 1940, quando meu avô esteve por lá, o forte passava por um processo de reocupação. Não é minha pretensão fazer aqui uma cronologia do Forte Príncipe da Beira. Gostaria apenas de chamar a atenção para o fato de que através desse monumento é possível entender o processo de ocupação do território que hoje corresponde ao estado de Rondônia–desde o século XVIII até o tempo presente. Digo isso porque atualmente há uma comunidade remanescente de quilombo na mesma localidade e com o mesmo nome representada através da Associação Quilombola do Forte Príncipe da Beira (ASQFORTE). O quilombo foi certificado pela Fundação Cultural Palmares em 2015 e disputa a titulação do território em que vive com a União Federal – representada pelo Exército Brasileiro, através de processo administrativo aberto no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2008. Ainda de acordo com a arqueóloga Louise Cardoso de Mello: “A comunidade quilombola do Forte Príncipe da Beira se considera descendente dos africanos escravizados procedentes de Vila Bela e dos que foram enviados à região para as construções das fortalezas de Nossa Senhora da Conceição e Príncipe da Beira, que viria a substituí-la, bem como dos índios que habitavam a região. Atualmente, muitos dos seus membros se autodeclaram caburés, isto é, descendentes de indígenas e negros”. Além disso, o Forte Príncipe da Beira foi tombado como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na década de 1950 e hoje integra o Conjunto de Fortificações Brasileiras candidatas a patrimônio mundial pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). Para quem acha que não vale a pena conhecer, que só restauram ruínas e que não há mais nada a ser pesquisado sobre ele eu digo o seguinte: o forte está vivo e há inúmeras disputas em torno dele! Passaram pelo Forte Príncipe da Beira homens e mulheres de diferentes procedências e nas mais variadas situações. Esses sujeitos deram significados ao forte que vão muito além do que consta nos arquivos do Conselho Ultramarino. Meu avô é um grãozinho de areia no meio de tanta gente. Destaco mais uma vez que é por conta da experiência dele e da memória que ele e minha avó construíram sobre a fortaleza que estou aqui escrevendo esse texto. Para encerrar essa conversa, eu estive em Costa Marques em maio de 2019. Uma viagem maravilhosa proporcionada pela professora Cátia Sanfelice (UNIR – Ariquemes). Na ocasião, fizemos uma visita ao forte guiada por Angel Pessoa, quilombola da comunidade que vive no mesmo território. Foi um momento mágico e sou muito grata por ter tido essa oportunidade.