Buenos Aires.
Calaram-se os minaretes e os altares. O silêncio dos templos tornou-se como um trovão.
Deviam falar as religiões, especialmente o Islã e o cristianismo. Deviam-se ouvir vozes com reconsideração profunda ou reflexões críticas sobre o efeito que têm certos dogmas antigos. Mas os dias se passaram e os corpos crivados de balas foram se esfriando em Orlando sem que as religiões dissessem algo mais do que lugares comuns.
De imãs, aiatolás, mulás, ulemás, bispos, cardeais, patriarcas ortodoxos, pastores e líderes religiosos em geral cabia esperar algo mais que repúdios ao “ato terrorista” e afirmações de que “a vida só Deus a dá e só Deus a tira”.
É óbvio que um massacre é um ato terrorista desprezível. Mas que o alvo do ódio exterminador haja sido um clube gay, impunha outro tipo de reflexão às religiões que há séculos vêm estigmatizando a homossexualidade como uma perversão antinatural, uma degeneração que ameaça a integridade da “criação divina”.
A estigmatização de um grupo social implica sua conversão em alvo de ódios e fobias que em algum momento transformam-se em ataques. Nem o catolicismo nem e as igrejas luteranas e calvinistas jamais se desculparam por haverem estigmatizado os judeus da Europa.
Na igreja de Roma, a louca acusação de “povo deicida” (ou seja, assassino de Deus) originou-se na Idade Media só recentemente foi suprimida no final do século 20.
Os cristãos confinaram tanto judeus asquenazes como sefarditas em tarefas e atividades miseráveis e pecadoras, mas que eles consideravam necessárias, tal como o emprestar dinheiro. Perto do final do século 19 foi a confluência da acusação de deicídio com a de serem eles usurários gananciosos acumuladores de dinheiro que acabou insuflando ospogroms na Europa Central, na Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, mesmo quando se tratava de judeus camponeses.
Esses estigmas que provocaram pogroms e deportações também geraram o genocídio que sofreu o judaísmo nas mãos dos nazistas e seus aliados fascistas.
Com estes antecedentes sobre o peso da estigmatização por que não assumir, a partir de religiões tão homofóbicas como o islamismo e o cristianismo, que suas pregações e repulsões sobre sexo estigmatizaram a homossexualidade, transformando-a em alvo dos lunáticos violentos e do moralismo criminoso?
Quando, em 2009, um tribunal de Delhi legalizou a homossexualidade na Índia, quase todas as organizações ligadas a diferentes religiões do gigante asiático gritaram aos céus. Com a exceção dos budistas, as igrejas apostólicas, o Conselho Cristão Utkal, o Partido hindu Bharatiya Janata e o Conselho da Lei dos muçulmanos indianos exigiram o retorno das penas contra as relações homossexuais.
A pressão religiosa fez com que acabasse sendo finalmente restabelecido o artigo 377 do Código Penal, uma herança deixada pelo colonialismo britânico desde a era vitoriana.
A intolerância religiosa se manifesta nas leis de muitos países africanos, enquanto nas teocracias islâmicas continuam a ser punidas as relações homossexuais com penas que variam de chicotadas a execuções, passando por penas de prisão que muitas vezes chegam a ser perpétuas.
Ante tais estatísticas, o massacre de homossexuais nos Estados Unidos por um lunático muçulmano envolve a responsabilidade não apenas do Estado Islâmico – o grupo ao qual o autor do ataque jurou fidelidade e que inspira essas ações com seus vídeos, jogando homossexuais de edifícios – mas praticamente de todos os líderes muçulmanos no mundo, incluindo os partidos e governos seculares, os imãs moderados.
Católicos, ortodoxos e protestantes também deveriam assumir sua parte na aversão à homossexualidade. Um pastor evangélico da Califórnia aplaudiu o aniquilador e disse que era preciso que matar todos os “sodomitas”. E na Igreja Católica, depois que o Papa fez um gesto ao se perguntar “quem sou eu para condenar os homossexuais” (embora não esteja longe da afirmação do pai de Omar Sadiq Mateen, ao dizer que “só Deus deve punir os homossexuais”), o Vaticano negou o de acordo a Laurent Stefanini, o embaixador enviado pelo Presidente François Hollande.
Não havia na França um diplomata mais adequado que Stefanini para a embaixada na igreja. Profundamente católico, formado na prestigiosa Escola Nacional de Administração e responsável durante anos pela Secretaria de Assuntos Religiosos da chancelaria francesa, foi condecorado pela seriedade e eficiência demonstrada nos quatro anos em que foi o número dois da legação junto à Santa Sé, com a Ordem de São Gregório, o Grande, uma das distinções mais importantes concedidas pelo Vaticano. No entanto, ao saber que Stefanini é homossexual, o papado se recusou a aceitá-lo no corpo diplomático.
Como acredita a Igreja que semelhante mensagem seja lida no mundo?
O Vaticano deve saber que rejeitar a um excelente diplomata por ser homossexual, só pode alimentar a intolerância. Uma intolerância que o Islã, mesmo em suas versões moderadas, incentiva ainda mais traiçoeiramente. Os muçulmanos calam, ou apenas balbuciam com voz imperceptível contra aberrações que o terrorismo comete em nome de Alá e seu profeta. E também apenas sussurram condenações quando a demência de um muçulmano psicopata massacra homossexuais, ativado pela criminosa homofobia difundida pelo Estado Islâmico e muitíssimos estados muçulmanos, sejam governados por extremistas ou por moderados.
Certamente, também os meios de comunicação de massa deveriam fazer as reflexões públicas que não fizeram depois do massacre de Orlando. Afinal de contas, na televisão ao redor do mundo houve humoristas caricaturando a homossexualidade
Até poucos anos atrás, quase não havia programas cômicos sem um quadro em que se ridicularizassem os homossexuais. E estas ridicularizações geralmente os mostravam como patéticos pervertidos sedentos de sexo. Esta é uma visão imposta por longos séculos de pregação religiosa estigmatizadora desta forma de se viver a sexualidade como uma perversão, algo contrário ao plano de Deus.
As ideologias dogmáticas, como réplicas seculares da religião, também a estigmatizaram. Para o marxismo-leninismo, ela era uma degeneração causada pelo capitalismo, enquanto para o nazismo era uma impureza racial que deveria ser extirpada da raça ariana. E a cultura política liberal, para não estigmatizar os homossexuais, a considerou libertina.
Por isso era preciso escutar muitas vozes, refletindo sobre a estigmatização e o massacre em Orlando. Começando pela religião que, em vez de fazer ouvir uma autocrítica, o que fez foi aturdir com um silêncio inquietante: o silêncio dos templos.+
(PE/Notícias)
Versión en portugués del despacho SN 229/16
Traducción Prof. Sérgio Marcus Pinto Lopes
Tradutor e Intérprete
Publicado em Notícias em 27 de junho de 2016.