Perspectivas para superar a Aids são promissoras… Mas os corações endurecem

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Ester Lisboa*

“Cria em mim, ó Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito estável.” Salmos 51:10

Depois de quase 35 anos de epidemia, a Aids deixou de ser misteriosa. Ela ainda guarda alguns segredos, mas os esforços para combatê-la estão dando resultados. A ONU tem como meta acabar com a epidemia até 2030, o que não significa a extinção do vírus, mas a redução dos números de pessoas infectadas. Parece difícil, entretanto, grande parte da comunidade científica acha possível. A resposta à epidemia gerou um mo
vimento global, mobilizações, manifestações que transformaram a abordagem de questões de saúde e desenvolvimento.

Mesmo com o avanço nas perspectivas para seu enfrentamento, a Aids continua vitimizando os homens, as mulheres e os jovens das comunidades religiosas, devido à ações preconceituosas e estigmatizadoras. O que leva a crer que será mais fácil alcançarmos a vacina de cura da Aids do que regenerar os corações de muitas pessoas que se identificam como pessoas de fé.

A Aids nem sempre é abordada com isenção e qualidade de informação no seio das comunidades religiosas. A respeitabilidade que estas inspiram e a capilaridade social que possuem, podem desempenhar papel estratégico na prevenção e na informação, assim como na luta contra os preconceitos e contra as várias modalidades de discriminação, muitas vezes justificadas por um moralismo pseudo-religioso.

Há boa dose de consenso na comunidade científica a respeito da importância do teste de HIV. Quanto mais ele é feito, mais o vírus é detectado e mais gente pode acessar o tratamento no início. Isso faz com que o risco de transmissão diminua, uma vez que este é sempre proporcional à quantidade de vírus que a pessoa tem no sangue.

Portanto, as comunidades religiosas têm diante de si um grande desafio: o de um trabalho sério e responsável que aborde esse tabu de forma comprometida com o enfrentamento da epidemia. Não se pode continuar caindo no erro da omissão. A  Aids exige justamente a ruptura das amarras da desinformação sobre o tema e da não compreensão da sexualidade como Dom de Deus.

O Brasil é um país de muitas tradições religiosas, como o cristianismo, o islamismo, as religiões afro-brasileiras, o judaísmo, etc, o que resultou de vários movimentos migratórios, incluindo os forçados (o tráfico de pessoas escravizadas trazidas do continente Africano), entre outros fatores. As organizações de caráter religioso podem ser levadas à superação de preconceitos e tabus por meio da mobilização, articulação qualificada e participação de seus integrantes, e do encontro acolhedor com a diversidade a partir de experiências de diálogo inter-religioso e ecumênico.

O Brasil sempre esteve na vanguarda do movimento de luta contra a Aids, promovendo uma abordagem inovadora baseada no mais alto compromisso político, em evidências científicas e em princípios de direitos humanos. Sua resposta nacional é inclusiva, contando com o papel estratégico de governos em seus diversos níveis e setores como a academia, a sociedade civil organizada, incluindo pessoas vivendo com HIV, o setor privado, os parceiros internacionais, as comunidades religiosas, entre outros.

A Comissão Nacional de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST), Aids e Hepatites Virais (CNAIDS), foi criada em 1986 como uma das iniciativas de resposta à epidemia, com o objetivo de assessorar o Ministério da Saúde na definição de mecanismos técnico-operacionais para controle da Aids e coordenar a produção de documentos técnicos e científicos. Desde a criação da CNAIDS, as organizações da sociedade civil tiveram sua representatividade garantida por portarias ministeriais. A partir de 1994, a Portaria 1.028/GM assegurou a participação de cinco representantes de organizações da sociedade civil na composição da Comissão, possibilitando que estes colaborassem com suas discussões e atividades. Participam ainda representantes de instâncias governamentais e da comunidade técnica científica.

Uma das organizações presentes no CNAIDS é o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC), que tem como missão “colocar-se a serviço da unidade das igrejas, empenhando-se em acompanhar a realidade brasileira, confrontado-a com o Evangelho e as exigências do Reino de Deus”. É compromisso do CONIC, portanto, atuar em favor da dignidade e dos direitos e deveres das pessoas. CONIC mantém entre os seus objetivos a promoção das relações ecumênicas entre as igrejas cristãs e o fortalecimento do testemunho conjunto das igrejas-membro na defesa dos Direitos Humanos. Portanto, sua presença no CNAIDS possibilita um olhar específico e profético em relação à prevenção, acolhimento e adesão ao tratamento.

Até 2020, a ONU pretende diagnosticar 90% das pessoas que vivem com HIV, tratar 90% delas e, dentre estas, reduzir a carga viral a níveis indetectáveis em 90% dos casos. É o chamado 90-90-90. Mas para tanto um fator importante é a redução do estigma e da discriminação. A epidemia expõe o silêncio e a indiferença das religiões e, ao mesmo tempo, desafia os religiosos a se tornarem mais informados e atuantes no trabalho de reconciliação.

A indiferença e omissão das comunidades religiosas geram o silêncio que alimenta preconceito e discriminação, tão difíceis de serem superados. Acredito que essa realidade tem paralelo com o relato bíblico sobre o arrependimento de Deus. “O Senhor viu que a perversidade do homem tinha aumentado na terra e que toda a inclinação dos pensamentos do seu coração era sempre e somente para o mal. Então o Senhor arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra; e isso lhe cortou o coração. Disse o Senhor: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei e também os animais grandes, os animais pequenos e as aves do céu. Arrependo-me de havê-los feito”. Gênesis 6:5-7

Com certeza Deus se entristece quando vê o grande número de jovens que estão sendo contaminados enquanto as escolas continuam rejeitando o debate, não permitindo que se fale de camisinha e da campanha de prevenção do HPV (Human Papiloma Virus). Isso deve ser repensado urgentemente, pois a educação deve colaborar mais com questões da saúde.

Com certeza Deus se entristece diante da dramática experiência de uma pessoa que vive com Aids há vários anos e continua sofrendo o preconceito e o estigma que reforçam a “morte civil” como consequência. Sequela imposta por uma sociedade conservadora, impiedosa e julgadora. A Aids, no Brasil, é também uma epidemia social.

Deus se arrependeu de ter criado a humanidade em geral? NÃO! Deus ficou triste, quando viu a maldade humana, que havia e hoje tem alcançado proporções enormes. Suas criaturas erram de modo insistente a ponto de se perder eternamente. Deus não tem prazer na morte de ninguém, o arrepender-se é expressão direta de seu pesar.

A dignidade, qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano, tem sido desrespeitada. A luta pela afirmação e o respeito à dignidade das pessoas é responsabilidade que deve ser cumprida dia após dia.

Colocar a fé em prática é exercitar a solidariedade para com os que sofrem com a doença e agir contra todas as formas de discriminação, motivados por verdadeiro compromisso cristão em prol de ações apropriadas e eficazes.

Vivemos em uma sociedade onde a alegria deu lugar ao medo, o amor deu lugar ao ódio, a solidariedade deu lugar à indiferença, a união deu lugar à separação. Hoje a sociedade, em geral, criminaliza o afeto, o amor, a felicidade…

Precisamos aprender a cumprir a obrigação de garantir a vida plena de todas as pessoas. Quem sabe assim, numa atitude de amor maior, Deus em sua onipotência, possa se orgulhar de sua criação.

 


*Ester Lisboa é assistente social, assessora de Koinonia Presença Ecumênica e Serviço e representante titular do CONIC no CNAIDS.

 

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