Há contradição em ser cristão e a favor da redução da maioridade penal?

Com tramitação aprovada, no dia 31 de março, pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara, a PEC 171/1993, que reduz a idade penal mínima, segue agora para análise de uma Comissão Especial encarregada de examinar o conteúdo da proposta (já que a CCJ avalia apenas sua legalidade). Com 43 votos a favor e 21 contra, os deputados decidiram pela admissibilidade da PEC, de autoria do deputado Benedito Domingos (PP-DF), que em sua origem tem até citações bíblicas na justificativa.

Como revelaram as matérias do Brasil Post e UOL, e o próprio documento da proposta disponível no site da Câmara, a PEC faz referência direta a três personagens da Bíblia: Salomão, Davi e o profeta Ezequiel. Este último, com aspas no fragmento: “A uma certa altura, no Velho Testamento, o profeta Ezequiel nos dá a perfeita dimensão do que seja a responsabilidade pessoal: Não se cogita nem sequer de idade: ‘A alma que pecar, essa morrerá’”.  

Edoarda Scherer da Rede Ecumênica da Juventude (REJU): "O discernimento de exemplo cristão mostra-se ausente entre nossas representações políticas"
Edoarda Scherer da Rede Ecumênica da Juventude (REJU): “O discernimento de exemplo cristão mostra-se ausente entre nossas representações políticas”
Mas não é só aí que religião e procedimentos do legislativo encontraram-se. Somente entre os deputados que votaram a favor da redução da maioridade penal, seis pertencem à Frente Parlamentar Evangélica e 18 à Frente Parlamentar Mista Católica Apostólica Romana. Juntos, esses deputados religiosos ou interessados em temas dessa natureza, são mais da metade (24) daqueles que votaram pela redução. Aliás, as Frentes Parlamentares Evangélica, com 68 deputados, e Católica Apostólica, com 209, têm respectivamente 32 e 69 representantes na Frente Parlamentar pela Redução da Maioridade Penal.

Religiosos vêem contradição
Por mais expressivo que seja o número desses parlamentares cristãos interessados em diminuir a idade penal, esta não é uma tendência unânime. Há quem inclusive defenda que tal posição, mesmo que tivesse de ser respaldada por valores cristãos – como nos trechos da justificativa da PEC 171/1993 -, estria em flagrante contradição com os textos bíblicos. 

Para o pastor da Igreja Presbiteriana Unida, Zwinglio M. Dias, esse tipo de proposta confunde vingança com justiça. “Os parlamentares favoráveis revelam uma enorme insensibilidade em relação aos valores humanos profundos contidos na mensagem que muitos deles dizem proclamar. Não se dão conta – parece – da contradição em que se encontram envolvidos. O Evangelho é um chamado ao cuidado extremado do outro – ‘…amarás ao teu próximo como a ti mesmo…’ -, principalmente, daqueles em situação de fraqueza, penúria, abandono, sofrimento e dor. A não transformação da realidade socioeconômica e cultural que gera a delinquência juvenil não será em nada afetada por mais uma lei que se ocupa apenas das conseqüências e não das causas”, comenta o pastor que trabalhou por 25 anos em comunidades pobres do Rio de Janeiro.

O historiador e evangelista da Igreja Metodista em Bacia de Anchieta, André Guimarães, também tem uma interpretação dos textos bíblicos que difere daquela da justificativa da PEC171/1993. “As escrituras sagradas tomam partido tanto pela educação e pelo cuidado que as crianças precisam receber. O primeiro testamento é marcado por recomendações neste sentido. Nos textos do segundo testamento Jesus dá continuidade a essa tradição profética de cuidado com a criança ao ponto de colocá-las como paradigma para quem deseja ser acolhido no Reino de Deus. Ser cristão e favorável à redução da maioridade penal é jogar no lixo toda essa tradição profética e de denúncia do status quo, que promove a negligencia de direitos e a forma como nossas crianças e adolescentes vivem no Brasil”, observa Guimarães, que também é integrante da Rede Fale, que reúne religiosos para enfrentar as desigualdades sociais.

A jovem Edoarda Scherer, Facilitadora Nacional da Rede Ecumênica da Juventude (REJU), questiona a participação cristã no processo de aprovação da proposta na CCJ: “Jesus viveu em uma sociedade homogênea? Não, viveu sob um regime autoritário, entre tensões religiosas e guerras. Veio para salvar a todos e todas, não cristãos também, pasmem… Ele deixou um recado valioso: ‘coloque-se no lugar do outro antes de fazer qualquer julgamento’. O discernimento de exemplo cristão mostra-se ausente entre nossas representações políticas, que se intitulam defensoras do cristianismo, mas, com estas ações políticas banalizam e violam direitos. É uma atitude imediatista e midiática de impor aos menores de dezoito anos a responsabilidade pelo caos social e político que vem se agravando há décadas no país, conclui a representante da REJU. A instituição participa do Fórum Ecumênico ACT Brasil que logo após a aprovação da PEC 171 na CCJ, publicou uma nota repudiando a decisão dos deputados.

O evangelista da Igreja Metodista em Bacia de Anchieta, André Guimarães: "As escrituras sagradas tomam partido tanto pela educação e pelo cuidado que as crianças precisam receber"
O evangelista da Igreja Metodista em Bacia de Anchieta, André Guimarães: “As escrituras sagradas tomam partido tanto pela educação e pelo cuidado que as crianças precisam receber”
Solução?
O debate sobre a maioridade penal levantado pela tramitação da PEC 171 tem sido impulsionado principalmente quando algum crime grave – sobretudo, contra a vida – é cometido por um adolescente. No entanto, os dados revelam outra realidade. O Unicef, por exemplo, estima que 1% dos homicídios registrados no Brasil seja praticado por pessoas entre  16 e 17 anos. De outro lado, entre 2006 e 2012, mais de 30 mil brasileiros dos 12 aos 18 anos foram mortos. De acordo com matéria do Jornal o Globo, se aprovada do jeito que está, a proposta deve aumentar a população carcerária que hoje é de cerca de 500 mil pessoas, com um déficit de vagas que chega a 40%.

Entre os parlamentares que apresentaram voto em separado, como Laerte Rodrigues de Bessa (PR-GO) e Capitão Augusto (PR-SP), um dos argumentos é o de que, nos dias atuais os adolescentes têm plena compreensão do que seja a prática de atos ilícitos.

“A questão não passa pela plena consciência que o jovem pode ter dos seus atos. Mas a forma que o Estado tem tutelado e garantido a vida plena de seus jovens. A lei é plena para todos? Todo mundo tem acesso à Justiça e dignidade de direitos previstos constitucionalmente? Considero estas perguntas mais significativas”, rebate Edoarda. 
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