Equipe de Aliança ACT e assessores de KOINONIA visitam região Serrana

Márcia Evangelista

Os integrantes da Equipe de Suporte Rápido (ESR) da Aliança ACT estiveram, entre os dias 31 de janeiro a 03 de fevereiro, avaliando in loco a situação de calamidade na região Serrana no Rio de Janeiro.

Participaram da visita às cidades de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo, Linda McClintock-Tiongco e Nancy Quan, que integram o ESR; Rafael Soares de Oliveira, Diretor Executivo de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço; Marilia Schüller, assessora de KOINONIA; e Lucia Helena, representante da Associação de Agricultores Biológicos (ABIO), que presta assessoria aos agricultores da área rural da região serrana do Rio de Janeiro.

No dia 28 de janeiro foi finalizado o pré-apelo, que descreve ações de apoio às vítimas, planejadas pelos parceiros locais, as comunidades da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Associação de Agricultores Biológicos (ABIO). O documento, elaborado em conjunto com assessores da organização brasileira KOINONIA – que está à frente deste trabalho – foi repassado para análise do escritório de ACT, em Genebra (Suíça). Com a aprovação do documento por ACT, a equipe terá duas semanas para escrever o apelo final, com mais detalhamento, incorporando ajustes e sugestões.

Leia a seguir, o relato escrito pelo Diretor Executivo de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, Rafael Soares, sobre as impressões e constatações da visita aos municípios de Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo.

 

Petrópolis há 22 dias da calamidade

As imagens da devastação no vale do Cuiabá, em Petrópolis, de áreas, casas e vidas chocam. Arrebatam o coração e mente num turbilhão de sentimentos, que torna inevitável seguir refletindo sobre aquela noite do desespero.

Dia 12 de janeiro, era cerca de 1h30, de uma madrugada afundada na escuridão da falta de luz, sempre antecipada em chuvas torrenciais, de repente se ouviam estrondos de pedras rolando e muita água em avalanche, com as gentes sem saber o que fazer… E num lance, num roldão, tudo foi arrastado – não havia mais casa, nem qualquer vizinhança, tudo ruiu em 30 minutos! E o que não foi arrastado afundou em uns 4 metros de altura de água…

Imaginar as mesmas casas 4 horas antes com famílias entre jantares, conversas, cafezinhos, novelas e crianças de férias, traz à tona dores de empatia tão profundas, que são difíceis de suportar… Mais de cinco minutos de contemplação dos cenários de um novo deserto que triturou casas e gente, árvores, animais e terras, sugam os sentimentos para as profundezas do embotamento e impotência. Quase a vitória completa da força estranha que se alimenta do caos da calamidade – desespero e rancor – contra a escolha maldita do acaso (ou seria descaso) desse jeito torturador de matar.

Algumas histórias vêm para resgatar sentimentos, energias, esperanças e fé.

Sr. Jurandir, cerca de 70 anos, e que perdeu 18 familiares, entre os quais 5 ainda desaparecidos, conta a sua história da madrugada interminável, cujas águas baixaram por volta das 11h00 daquele dia.

“Não sei de onde, surgiu um colchão inflável e muitas cordas que seguimos amarrando… Enviávamos o colchão amarrado que ia arrastado até o interior das casas, que voltava ora cheio de idosos, ora de mulheres e homens, ora de 5 a 6 crianças deitadas; e nós puxávamos, cordas amarradas à cintura… E repetimos isso aqui no Benfica (Vale do Cuiabá) muitas vezes, antes que a água cobrisse as casas. Sabe, nem me lembro quantos salvamos, foram mais de 50 vidas, quase 100, hoje todas desabrigadas vivendo no ginásio da escola municipal”.

Aposentado, o Sr Jurandir transformou sua dor em trabalho, dedicando-se a identificar famílias que tudo perderam e a visitar as áreas atingidas em busca de amigos e familiares – de sua família tão extensa que se confunde com a ocupação do Vale do Cuiabá, para onde vieram seus avós portugueses, onde somou entre segundo e terceiro graus mais de 200 parentes. Sr Jurandir conhece gente atingida de todas as classes e tem identificado famílias entre as mais vulneráveis para canalizar o apoio direto da Aliança ACT, apoiada nas iniciativas dos luteranos da IECLB em Petrópolis.

 

Teresópolis há 20 dias da calamidade

Na cidade, Herculano, lembra, daquela madrugada, a história de uma ligação recebida do celular de um amigo.

“Cara, estamos minha esposa e eu com as crianças no colo e a água no pescoço… Estou ligando pra avisar que vamos morrer, não há como furar a laje, a água impede abrir portas e janelas, já tentei de tudo, e a água ainda sobe” (morreram por afogamento e esmagados no teto da casa)… Imagem que se repete na memória do incansável voluntário da Cruz Vermelha em Teresópolis, com um estoque de 200 toneladas de doações de comida e roupas para mais um mês de atendimento. O diagnóstico se repete – faltam proteínas e vitaminas nas cestas de alimento, organizadas com a doação massiva da população brasileira. A ação da Cruz Vermelha se redobra em esforço, contra burocracias, ameaças de corrupção velada e agendas políticas misturadas de interesses não revelados. Ainda assim, seguindo sua tradição, estará atuando com a Secretaria de Saúde da Prefeitura local.

Nas largas filas por cestas de alimentos se visualizam os atingidos, e no interior de igrejas, escolas e do estádio vivem os desabrigados, cada um em seus 2 a 4m2 entre colchão, comida e roupas doadas, que variam se são casal e se com crianças. Cerca de 3.000 assim estão e ainda não encontraram abrigo nem com familiares. Entre os 7 bairros atingidos no primeiro distrito, o mais urbano, um desapareceu 90% e não se tem a avaliação técnica de quanto de cada um dos bairros será condenado como área de risco.

A Aliança ACT atuará com a Cruz Vermelha, suplementando cestas de alimentos e demandando entregas para as regiões rurais onde elegeu intervir.

É o mesmo tipo de conexão que se fará com a Ong Viva Rio no segundo distrito da cidade. A Ong, além das cestas de alimentos, manterá apoio de saúde psicossocial e treinará em médio prazo, jovens para serem agentes de saúde e ambientais – acompanhando casos de saúde de atingidos e com foco na formação de uma brigada de identificação de áreas de risco e de atuação em emergências. Ong que por seus meios deve também conectar-se com a Secretaria de Saúde.

Na circulação por áreas rurais devastadas, registramos a vitalidade da solidariedade.

Sr Zézinho, líder comunitário em Venda Nova, e a Diretora da Escola de Educação Agrícola do local, acolheram as vítimas da inundação que assolou a região, de mais de cinco comunidades atingidas. Na Escola e no templo local da Igreja Católica, acolheram cerca de 150 pessoas, e estabeleceram um centro de atendimento e coleta de ajudas de toda sorte, que espontaneamente chegavam à região.

“Abrigamos as famílias. Poucos morreram, pois tudo encheu mais lentamente e pudemos correr com as pessoas, ainda que muitas tenham ficado isoladas. Cadastramos todos os abrigados e lhes demos a ajuda direta da sociedade: carros, caminhonetes, todo tipo de veículos apareceram com doações e organizamos tudo na Escola… Além das 51 famílias desabrigadas cadastramos mais famílias que perderam tudo, mas que estavam com parentes ou ainda tinham um teto, para onde voltaram. Hoje atendemos com cestas a cada 15 dias, cerca de 100 famílias, todas cadastradas e visitadas”. Mais uma vez a brecha na ajuda – alimentações carentes de proteínas, vitaminas e sais minerais, necessários a uma população que precisa se fortalecer para o trabalho na terra.

Aos cenários que vimos de destruição, áreas com mais de dois metros de areia cobrindo o solo, já se somavam outros, em espaços com pouca areia carreada pelas chuvas. Ali ocorria o que o Sr. Zezinho chamou de atitude desesperada, “as pessoas, mesmo os meeiros e arrendatários, estão voltando a plantar, numa atitude desesperada para ter algum ganho em um mês, e não dependerem de abrigos e apoio para comida”, mas sabiam, como Sr. Zezinho avaliava, que estavam aumentando suas dívidas e que em 30 dias estariam a beira da quebra financeira total, com as dívidas que acumularam com as cheias somadas às novas dívidas. Numa região em que toda a gente trabalhava com sistemas de irrigação, ou próprios ou fornecidos pelo dono das terras, o crédito direto das Lojas estava fechado, nenhum acesso a políticas de financiamento se abrira e mais de 90% dos produtores não tinha a Declaração de Aptidão para a Produção (DAP) – documento necessário, mesmo antes das cheias, para agricultores familiares acessarem serviços oferecidos pelo Estado.

No encontro de avaliação mais geral com técnicos da ABIO, que viram de perto a devastação do assentamento rural de Fazenda Alpina, retratada pelo Gustavo nosso repórter, após 15 dias da calamidade, foi constatado no meio rural de toda a Região Serrana, sinais de descaso, incerteza, falta de crédito, falta de reconhecimento público de milhares de produtores familiares. Muitos desabrigados sobrevivendo da contínua ajuda da solidariedade social que se estabeleceu no interior. Líderes comunitários, Associações de Amigos, Moradores e Produtores, diretoras de escolas, pessoas que fizeram a imediata diferença e que mantém a assistência às famílias, sem apoio de órgãos do Estado – informações confirmadas no diálogo franco à tarde, com a Secretaria de Agricultura de Teresópolis (SAT), cujo Secretário revelava disposição, mas desvelava suas iniciativas limitadas ao âmbito da recuperação de vias com apoio do Exército e contratação de empreiteiras. Com as lideranças e as associações se consolidam vínculos locais entre a ABIO e a Aliança ACT, que se valerá da oferta de 4 caminhões da SAT para a logística da ajuda.

Naquela noite o travesseiro não foi um amigo. Brigava com um sono agitado pela contida ira ao longo do dia, nas escutas de uma não ação governamental, ou, pior, daquilo que já deveria ter morrido por inanição, mas se mantém como um câncer robusto nas veias do Estado – o pragmatismo eleitoreiro, as políticas para currais de votantes, os aglomerados de gentes sem cuidados na cidade, ora arrastados, e os pauperizados e esquecidos viventes no rural, de poucos votos, ora sem produção e meios de recuperar-se. Dormir com esse pesadelo vivo e manter o foco prático em alguma colaboração possível com organismos do Estado foi impossível, até que o sono veio como bálsamo entre lembranças das imagens hercúleas (ou seriam “herculanas”) da maioria feminina de voluntárias a separar doações e arrumar cestas no galpão da Cruz Vermelha.

 

Nova Friburgo há 21 dias da calamidade

Seguir pela estrada que liga Teresópolis a Nova Friburgo é uma travessia de uma fronteira de deslizamentos de terra, as montanhas rasgadas do seu verde, com grandes pedras expostas e soterramentos abaixo. Vieira, em Teresópolis, e Conquista, sua vizinha de Nova Friburgo, testemunharam o que a Sra. Andréa comentara em Venda Nova: “a gente olha pros morros assim, parece que um monstro invisível arranhou com suas garras arrastando pra baixo”… Ainda no caminho, a distribuição de alimentos da solidariedade cidadã e retomadas de “desesperados plantios”, com uma passagem pela Ceasa local, antes mercado de distribuição, agora um galpão de sacos pretos de doações de roupas amontoados.

Na entrada da cidade, por essa via, um cartão de visitas às avessas: o Hospital São Luís interditado pela encosta que abalou suas estruturas, desde aquela noite, quando a transferência de internados graves e a “alta forçada” de outros em recuperação, ia de encontro à falta de leitos e condições de atendimento de emergência para tantos – as redes pública e privada de saúde colapsaram.

Mais de 11 bairros às escuras e o centro da cidade atingido violentamente, hoje com as lembranças vivas do desespero vivenciadas na nuvem de poeiras levantadas, pela retomada da circulação de veículos e pela ação de centenas de garis contratados.

A visita à Creche Municipal no loteamento Santa Bernardete, do Bairro São Geraldo, na periferia da cidade, com seus equipamentos e materiais todos destruídos pela enchente, mostrou sinais do esforço de recuperação mais coordenada. Ali, a Paróquia Luterana de Nova Friburgo, decidiu doravante concentrar seus esforços de ajuda, que, a partir da identificação das famílias das 67 crianças que se valiam da Creche – entre as desabrigadas em abrigos, alojadas em casas de parentes e as que voltaram para casa – fará um trabalho social de longo prazo, não só apoiando a escolinha, mas atuando em favor dos direitos daquela população. As instalações físicas estavam em vias de recuperação por empreiteira contratada, em trabalho que seguiria por mais duas semanas.

Essa estratégia da Igreja Local é um compromisso assumido na articulação civil na Cidade, que reúne Rotary Clube, Viva Rio, Associação Comercial, OAB, entre outras que têm chegado, numa articulação de esforços que dividiu a cidade em áreas para não superpor iniciativas.

A conexão da ação local com a educação nos levou ao encontro com o Secretário Municipal da Educação. Instalada num Ciep de uma área em recuperação, a Secretaria tem no último andar do prédio ainda um número de 36 desabrigados, de mais de 100 que ali estiveram nesses dias; e o térreo cheio de sacolas de doações de roupas. A prefeitura teve das suas 135 unidades de educação, 90 danificadas e 3 totalmente perdidas. Sobre as cestas básicas que distribui aos 805 abrigos em suas 25 unidades, novamente se ouviu da carência nutritiva de proteínas e da preocupação com as repercussões com a saúde dessa população em 3 meses. O Secretário mostrou diversos planos de intervenção para a retomada da normalidade educacional até o início de março – com iniciativas próprias e com o grosso delas a depender de recursos articulados com o Estado e com a União. Se as perspectivas se cumprirem a recuperação será bem rápida.

A Aliança ACT tem nos luteranos sua principal base de trabalho, que colaborará com a Secretaria de Educação e irá monitorar as ações da mesma no município. Agrega-se às parcerias de ACT Aliança o núcleo local da ABIO, que se valerá das instalações oferecidas pela Paróquia para reunir-se, inclusive com técnicos da área agrícola do Estado do Rio de Janeiro, que perderam o escritório com a enxurrada (a exemplo da Pesagro).

Da reunião com técnico envolvido em grupos de estudo dos impactos e de planejamento de ações do Estado do Rio de Janeiro para a área rural, pouco se viu sobre ações que de fato surtirão efeito a curto prazo – não muito mais que uma carta de intenções, a depender de investimentos da União. Pontos críticos como a falta de financiamento rápido e a falta da Declaração de Aptidão para a Produção – DAP, são na sua maioria gargalos ainda não analisados, que podem estender a ajuda para a retomada da produção por meses ou mesmo inviabilizá-las em entraves burocráticos.

As palavras da Sra. Anna expressam um sentimento que pareceu contagiar aos poucos tudo que se via: de retomada da vida, de juntar-se entre os cacos despedaçados, de um refazer-se das gentes e da municipalidade, ainda que na incerteza dos prazos e do quanto que há por fazer. “Meu nome é Anna com dois ‘ns’, sabe – disse ela com os olhos marejados de emoção. Hoje é o primeiro dia que fiz comida em casa.” Voluntária, membro da Paróquia Luterana local, Anna simbolizava nitidamente mais uma entre as tantas mulheres que se espalharam em várias, se multiplicaram em tantas, que se desdobraram na retirada da lama de 10, talvez “privilegiados centímetros” que invadiram o salão paroquial, comparados aos metros e mais metros de lama que cobriram o centro da Cidade. Ativa como as outras voluntárias e voluntários incansáveis que se perderam de si entres os sacos de cestas básicas organizadas, no mesmo salão da catástrofe transmutado de vítima em apoio.

Lembrete final

A viagem de uma comitiva a se apresentar a todos/as como parte de uma Aliança internacional que atua em ajudas, cria uma expectativa de uma ação de apoio volumoso de recursos, ainda que feitas as necessárias explicações de que não estávamos a prometer nada e de que nossa Aliança ACT mobiliza recursos relativamente modestos em meio a calamidades de tanto vulto.

Por Rafael Soares de Oliveira, Diretor Executivo de KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço

 

Veja fotos tiradas pela Equipe de Suporte Rápido (ESR) da Aliança ACT na região Serrana do estado do Rio de Janeiro:

PETRÓPOLIS: https://picasaweb.google.com/116944305072896100773/FotosDePetropolis03Jan?authkey=Gv1sRgCMyCwcfs6JuvnQE#

PETRÓPOLIS – VALE DO CUIABÁ:

https://picasaweb.google.com/116944305072896100773/SOSCUIABAPETROPOLIS201102?authkey=Gv1sRgCODkoLahoI_Q-gE#

NOVA FRIBURGO:

https://picasaweb.google.com/116944305072896100773/NovaFriburgo02Jan?authkey=Gv1sRgCILK-Yqi5qHEcg#

TERESÓPOLIS 1:

https://picasaweb.google.com/116944305072896100773/FotosDeTeresopolis02Jan?authkey=Gv1sRgCK2-ibKyws7I6wE#

TERESÓPOLIS 2:

https://picasaweb.google.com/116944305072896100773/FotosDeTeresopilis01Jan?authkey=Gv1sRgCJzPgr–7r6aIg#

 

ALIANÇA ACT

A Aliança ACT é uma organização global de ajuda humanitária e apoio a projetos de desenvolvimento social, que reúne organizações em 125 países, com “escritórios” em 90 deles e uma equipe de 30 mil pessoas. Seu objetivo é atender, por meio de organizações locais, situações de emergência em regiões que passam por desastres naturais ou situações de subdesenvolvimento em áreas empobrecidas que necessitam de apoio.

No Brasil, atualmente integram a Aliança ACT a Fundação Luterana de Diaconia (FLD), a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese), Christian Aid, AIN (Ajuda das Igrejas da Noruega), CLAI (Conselho Latino Americano de Igrejas – escritório Brasil), Diaconia e KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço, que tem a sua sede principal localizada no Rio de Janeiro.

Saiba mais sobre ACT Aliança: www.actalliance.org

 

 

 

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