Reflexão especial pelo Dia Mundial de Luta contra a Aids

Helena Costa (chamada inicial)

O TIGRE E O LEÃO

No início eram as trevas. Nada se sabia sobre a nova doença e sua causa. A ignorância e o medo imperavam e a morte caminhava junto a nossos calcanhares. Felizmente o tempo e a ciência trouxeram a luz para a epidemia de AIDS, revelando seu causador e suas formas de agir. Assim, foi possível a descoberta de diversos exames e medicamentos que, juntos, deram condições de cercear sua propagação. Quase uma cura, um controle. Voltamos a fazer planos de longo prazo, voltamos a sonhar. Voltamos a viver. A viver em uma arena onde nos acostumamos a enfrentar e vencer um tigre por dia.

No entanto, o mesmo tempo e a mesma ciência estão se encarregando de comprovar que a AIDS está longe de ser considerada uma epidemia crônica e que seu controle é mais complexo do que se imaginava. Ela, assim como seu causador, é de uma mutabilidade tal que faz uma peste gay virar uma doença de “tiozinhos” e de meninas adolescentes. Do high society à periferia. Das oportunistas aos eventos adversos. Da diarréia ao câncer. Desde 2003, na arena da vida entrou um novo oponente, um verdadeiro leão que viria se somar ao tigre no intuito de derrotar nosso já combalido exército de gladiadores microscópicos.

Desde 2003 são relatados casos de linfomas e outros cânceres acometendo pessoas aderentes ao tratamento e situação imunológica estável, retardando o diagnóstico e comprometendo o manejo da doença. Desde essa mesma época são apresentados estudos relacionando os novos tumores ao longo tempo de exposição ao HIV e outros concluindo que seria efeito da aplicação da TARV [terapia anti-retroviral]. Igualmente, desde essa época, alguns membros da sociedade civil vêm intervindo em congressos, fóruns e demais espaços de controle social cobrando maior visibilidade ao tema e, além disso, medidas para preparar o SUS para uma eventual demanda de PVVA [pessoas vivendo com o vírus da Aids] para os serviços de oncologia. Nada foi feito.

Hoje temos um número assustador de ativistas vivendo com HIV em processos de biópsia ou tratamento de câncer. Em levantamentos informais verificamos que dentre as lideranças de PVVA do estado de SP, onze estão nessa situação. No recém realizado Encontro do Instituto Diet em Guarulhos, dentre 80 pessoas que participaram da oficina ‘Câncer e Aids’, éramos doze. Sabendo que tanto a AIDS quanto o câncer não diferenciam classes sociais, orientações e nem posicionamentos políticos, tememos que esse novo desafio esteja disseminado no SUS ocasionando perda de qualidade de vida, quando não mortes por causa não identificada, criando a ilusão de que as mortes relacionadas à epidemia estejam em queda.

Até quando a gestão pública e os laboratórios farmacêuticos irão argumentar o desconhecimento da procedência dos cânceres como motivo para a não adoção de medidas que se mostraram necessárias há pelo menos quatro anos? Quantos de nós teremos que passar por biópsias, quimioterapias, radioterapias que, aliadas ao coquetel, bombardearão os nossos gladiadores? Quantos não teremos acesso a esses insumos simplesmente por não haver previsão para essa demanda nos serviços de câncer? Ou, pior, quantos de nós não teremos assistência simplesmente por não haver sido diagnosticado em tempo, afinal os exames necessários para dar sustentação ao Melhor Programa de AIDS do Mundo são feitos no nosso jovem e complexo Sistema Único de Saúde, marcados sempre com espaço de meses entre a consulta e a realização do mesmo.

É preciso agilidade ao setor público para se adaptar aos sempre inovadores desafios impostos pela epidemia. É necessária a articulação urgente entre as áreas de câncer e AIDS. É necessário que os laboratórios farmacêuticos assumam de vez a fase quatro das pesquisas clínicas e monitorem esses eventos tão logo quanto surjam os primeiros casos. É necessário que a sociedade civil recobre a combatividade de outrora em nome da solidariedade e da vida das pessoas que vivem com HIV/AIDS. É necessário empunhar, uma vez mais, a abandonada bandeira pela cura da AIDS. Reverter o equivocado percentual utilizado para pesquisas de vacinas e o utilizado para novos medicamentos.

O Conselho Nacional de Saúde concordou que o assunto é grave, tanto que o pautou para a reunião da Comissão de AIDS em novembro. O mesmo com relação à CNAIDS. A RNP+BR e o Fórum de ONGs/AIDS, provocados por alguns ativistas, começam a se mobilizar e o movimento de luta contra a AIDS, ainda fragmentado, lamentavelmente resiste à discussão do tema. Lamentavelmente porque estamos vendo nossos amigos perplexos diante do ‘novo’ desafio. Amigos que acreditaram que a ciência e o tempo iriam resolver a luta contra o tigre. E que, ao ver um leão atacando pelo outro lado, voltam a sentir os ecos das primeiras décadas da epidemia e temem pela própria sobrevivência, pela sobrevivência de seus amigos e, por que não, pela sobrevivência do ‘Melhor Programa de AIDS do Mundo’ e do ‘maior movimento social do mundo’.

O MUNDO TEM PRESSA NA CURA DA AIDS!

O CÂNCER É A NOVA CARA DA AIDS.

 

Beto Volpe

Presidente do Grupo Hipupiara Integração e Vida – Grupo HIV/São Vicente/SP

Representante da Macro Região 2 da Rede Nacional de Pessoas vivendo com HIV/Aids – SP

 

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