10 Jardins Botânicos preservados!
Em vez de se assustar com as ameaças das reportagens de O Globo de uma reivindicação de uma área de “70 maracanãs favelizados”, a população do Rio de Janeiro deveria se alegrar pela oportunidade de ter a área equivalente a pelo menos 10 Jardins Botânicos preservados da Mata Atlântica, além do litoral pelo uso de uma população tradicional quilombola.
Nesse sentido, KOINONIA Presença Ecumênica e Serviço vem a público fazer esclarecimentos a respeito das matérias veiculadas no jornal O Globo, nos dias 20, 21 e 22 de maio, que apresentam informações incorretas em relação à regularização do território quilombola da Ilha da Marambaia.
Sobre a permanência da Marinha do Brasil na área: A matéria do dia 20 sugere, logo no início, a possível retirada da Marinha do Brasil da área caso a comunidade quilombola obtenha a titulação. Cumpre esclarecer que as informações contidas no Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), documento oficial produzido pelo Incra, em nenhum momento pressupõem a retirada da Marinha do Brasil da região. Essa informação, portanto, não encontra sustentação oficial.
Sobre o direito à auto-identificação das comunidades quilombolas: Cumpre esclarecer que não só o Decreto 4.887/03, como também a recentemente instituída Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), por meio do Decreto Nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário por meio do Decreto Legislativo no 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo Decreto 5.051, de 19 de abril de 2004, garante o direito à auto-identificação das comunidades quilombolas assim como o direito à propriedade da terra, determinado pelo artigo 68 da Constituição Federal do Brasil de
Entre os objetivos específicos de tal decreto: “reconhecer, com celeridade, a auto-identificação dos povos e comunidades tradicionais, de modo que possam ter acesso pleno aos seus direitos civis individuais e coletivos.” (art 3o VI)
Para os fins do Decreto, compreende-se por: Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (art.3o)
Sobre a constitucionalidade do decreto nº 4887/03, que regula o artigo 68 da Constituição Federal: Embora a constitucionalidade do decreto tenha sido questionada em ação direta de inconstitucionalidade impetrada pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), hoje DEM, é preciso ressaltar que dois pareceres favoráveis à constitucionalidade do decreto foram emitidos: um de autoria da Advocacia Geral da União (AGU) e outro do Ministério Público Federal (MPF). O Supremo Tribunal Federal ainda não julgou a ADIN.
Sobre a alegação da Marinha que muitos moradores não podem ser considerados quilombolas: Conforme a ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, no Documento do Grupo de Trabalho sobre Comunidades Negras Rurais de 1994, ao definir o termo remanescente de quilombo, afirma que: “o termo não se refere a resíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de uma referência histórica comum, construída a partir de vivências e valores partilhados.” Além disso, o que define grupo étnico é o seu modelo de vida sociocultural, medido em regras comuns de trabalho, uso da terra, parentesco e ocupação cultural ou êmica de um território étnico. Nesse sentido, todos que atendem a esses requisitos, controlados socialmente pelo próprio grupo, são parte do grupo.
Sobre a alegação de que a área em questão é de extensão desproporcional: Para os quilombolas da Ilha da Marambaia, a área em questão cumprirá não apenas a função de espaço para moradia, mas justamente para a reprodução social e cultural desse grupo tradicional. Segundo o Decreto 4.887/03: “São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.”
Já a Convenção 169 da OIT, determina que os países que a ratificaram “deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos, que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação” (art. 13). Assim, o Estado deverá adotar “medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência”.
Além disso, cumpre destacar que, ao contrário do que a matéria divulga, o cálculo da área não pode ser feito por família, e que, conforme o mapa disponibilizado a seguir, a maior parte do território reivindicado pela comunidade apresenta áreas de relevo acidentado, impróprio para moradia ou agricultura e de necessária preservação ambiental, cultural e paisagística.
Repúdio aos argumentos de possibilidade de especulação imobiliária e ocupação desordenada da ilha: “A Marinha…ameaça deixar o local, abrindo caminho para a favelização de um dos últimos paraísos ecológicos do Rio.” Com essa afirmação, a reportagem sugere que a ocupação dos quilombolas da Ilha da Marambaia tenderá à desordem e à especulação imobiliária da Ilha, desconsiderando a legislação que determina o caráter inalienável, impenhorável, imprescritível e indiviso do título, além de desconsiderar os hábitos ancestrais dos quilombolas que são os responsáveis pela estado atual de preservação ambiental.
Sobre a ausência do risco à preservação ambiental: O vasto material antropológico, jurídico e histórico já produzido só reafirma que os quilombolas da Marambaia, por seu modo de vida tradicional, preservam o patrimônio histórico (ruínas e memória) e território étnico que ocupam há mais de 150 anos, em regime de uso comum e respeito aos ciclos de cultivo da terra e da extração marinha. O título de propriedade que é conferido às comunidades quilombolas é coletivo e se caracteriza por ser inalienável, impenhorável e imprescritível. Dessa forma, a legislação pátria buscou, justamente, proteger as terras de uso tradicional dos quilombos da especulação imobiliária.
Além disso, o Art. 19 do Decreto 4.887/03 prevê a criação de um Comitê Gestor “para elaborar, no prazo de noventa dias, plano de etnodesenvolvimento, destinado aos remanescentes das comunidades dos quilombos”, integrado por representantes de diversos órgãos do governo, entre eles da Casa Civil da Presidência da República; dos Ministérios da Justiça; da Educação; da Cultura; do Meio Ambiente; e do Desenvolvimento Agrário.
Sobre as peças técnicas produzidas sobre a área: A matéria publicada reproduz a fala de representantes da Marinha que colocam sob suspeita o relatório técnico (RTID) produzido pelo INCRA, fundamentado nas informações do Relatório Técnico-Científico sobre a comunidade remanescente de quilombos da Ilha da Marambaia produzido por KOINONIA em 2003, atualizado pelo Incra em 2006. Apesar do questionamento do relatório, caracterizado pelo comandante da Marinha como unilateral e tendencioso, a reportagem não apresenta fundamentos técnico-científicos que justifiquem as conclusões da Marinha acerca do tamanho da área que pertence à comunidade.
Sobre a declaração de que a Marinha nunca teve a intenção de expulsar as atuais famílias: Embora o referido comandante afirme, segundo a reportagem, que “a Marinha nunca teve a intenção de expulsar as atuais famílias”, diversas ações judiciais de autoria da União, representando os interesses da Marinha do Brasil, foram impetradas com o pedido da retirada de famílias do local, o que foi somente interrompido em 2002 com uma Ação Civil Pública, solicitando o reconhecimento da comunidade como remanescentes de quilombo e a interrupção das ações de expulsão da Marinha contra os moradores da ilha.
Finalmente, KOINONIA declara total apoio à comunidade da Ilha da Marambaia, que deve ter seu direito à terra garantido com base no art. 68 da Constituição, no Decreto n. 4.887/03, na certidão de reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho e na memória legitimadora dos moradores. Entendemos, portanto, que a regularização do título coletivo da terra, indiviso e inalienável não só dará posse legítima às famílias seculares que ali habitam, mas também preservará o ambiente e sua sustentabilidade, e manterá a ilha fora do alcance da especulação imobiliária.
Leia as reportagens do O Globo na íntegra lendo a notícia do Observatório Quilombola: RJ – O Globo contesta direito à terra de quilombolas da Marambaia