Livro relatará 40 anos de impunidade na mortes de lideranças rurais, como assentados, sindicalistas e sem-terra. Acima, imagem do casal assassinado José Claudio e Maria do Espírito Santo (Foto cedida por Felipe Milanez)

Manaus (AM) – Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, sindicalista e agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi morto aos 43 anos por pistoleiros em maio de 1980, em São Geraldo do Araguaia, no sudeste do Pará. Ele foi o primeiro dirigente sindical assassinado na região conhecida como a mais violenta na luta pela terra no País. Quarenta anos depois, Alex Costa Lima, filho de Gringo e que na época do assassinato tinha apenas nove meses, defendeu uma dissertação de mestrado que foi o pontapé para o resgate histórico de assassinatos e chacinas de trabalhadores rurais e se transformará no livro “Luta Pela Terra Na Amazônia”.

A obra reunirá relatos sobre as mortes registradas na década de 1980 até os processos mais recentes, como o assassinato do casal de extrativistas José Claudio e Maria do Espírito Santo, em 2011, após terem denunciado ilegalidades que aconteciam no assentamento em Nova Ipixuna, sudeste do Pará.

O livro “Luta Pela Terra Na Amazônia” apresentará 16 artigos e textos escritos por familiares ou amigos das vítimas, e contará em detalhes casos como os de algumas chacinas, entre elas, as da Fazenda Ubá e da Fazenda Princesa, ocorridas na década de 1980, e o Massacre de Eldorado, em 1996.

Os professores universitários Rogério Almeida e Elias Sacramento são os organizadores da obra. Elias Sacramento, que leciona História na Universidade Federal do Pará, no campus de Cametá, ficou encarregado de contar a história de pessoas marcantes na luta pela terra no estado. Uma delas, particularmente dolorida, é a de Virgílio Sacramento, seu pai, uma conhecida liderança sindical no município paraense de Limoeiro do Ajuru, no Baixo Tocantins, nos anos 1980.

Extrativista, Virgílio Sacramento se mudou para Moju e quando lá chegou comprou  um pequeno lote de terra. No município, integrou o sindicato, em uma gestão que começou a criticar e a enfrentar as grandes empresas que expulsavam lavradores das suas terras. Em 1987, Virgílio sofreu um grave atropelamento e não resistiu aos ferimentos. Até hoje a família não teve resposta sobre o que aconteceu com o líder, se a morte foi acidental ou intencional.

Elias Sacramento tinha 12 anos quando Virgílio morreu. A mãe, dona Oneide, precisou se desdobrar para cuidar dos 11 filhos. Quando relembra a história, o professor reforça a impunidade sobre a morte do pai. 

“Casos de chacina, assassinato que nunca foram apurados, tudo isso demonstra que a capacidade do estado em fazer o o gerenciamento desse problema para dar uma solução não ocorre, não acontece tanto em nivel nacional, quanto nivel de unidade federativa”, pontua o historiador Sacramento.

Imagem de arquivo de Virgilio Sacramento (Foto cedida por Elias Sacramento)

Rogério Almeida, professor do curso de Gestão Pública e Desenvolvimento Regional na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), afirma que “Luta Pela Terra Na Amazônia” é fundamental para o momento atual pelo qual o país passa.  “Por conta da eleição desse governo, praticamente, ele  [Jair Bolsonaro] sinalizou como licença para matar. Você vê casos, ocorreram várias mortes indígenas no Maranhão, perto de Belém, aqui mesmo nessa região do Xingu tem muita tensão em relação a garimpeiros, na região do Anapu são bem violentos”, exemplifica.

Para conseguir realizar o projeto, os professores Rogério Almeida e Elias Sacramento iniciaram um financiamento coletivo online para a edição e a impressão dos exemplares. Os recursos servirão para custear a produção do livro, e ainda é possível fazer contribuições.

A disputa pela terra

Trabalhadores rurais e assentados durante o cortejo do funeral da Irmã Dorothy Stang (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Nos últimos três anos, o Pará registrou 30 mortes por conflitos de terra, segundo dados da CPT. Entre os mortos estão 28 homens e 2 mulheres. A violência no campo é resultado da expansão da pecuária, da mineração e dos garimpos ilegais, atividades que avançam pela floresta e vêem os trabalhadores rurais como obstáculos.

As principais vítimas no campo são assentados, sindicalistas e os sem-terra, que são assassinados tanto por conflitos de terra quanto por questões trabalhistas. Além da violência, outra característica comum nesses conflitos por terras é a ausência de investigação e julgamento dos criminosos.

Na análise da advogada e membro da coordenação de formação da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH), Rosa Corrêa, hoje as questões pela luta da terra se tornaram mais complexas por envolverem muitos outros elementos. “Não estamos visualizando o lugar onde a pessoa vai trabalhar, mas é onde a pessoa vive. Existe muita cobiça pelos territórios indígenas, quilombolas, que estão cristalizados dentro de um sistema jurídico, mas que na prática são condicionados na medida que se inventam leis”, explica. 

Conflitos em Anapu

Funeral da Irmã Dorothy Stang em Anapu em fevereiro de 2005
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Rogério Almeida explica que existe uma cadeia muito frágil em relação à Justiça até chegar no desfecho dos crimes agrários. Raramente as investigações e os julgamentos chegam até os mandantes. Uma exceção foi o caso da irmã Dorothy Stang, um dos poucos que foram julgados rapidamente e de grande repercussão mundial. No livro “Luta Pela Terra Na Amazônia”, o procurador federal Felício Pontes e o padre Amaro narram o assassinato da irmã Dorothy, em fevereiro de 2005, no município de Anapu. A missionária foi morta com seis tiros disparados por pistoleiros. Cinco pessoas envolvidas no crime foram julgadas.

O município de Anapu, no oeste do Pará, é considerado um dos mais perigosos para lideranças e sindicalistas. De 2018 a 2020, foram registradas seis mortes relacionadas a conflitos de terra, empatando apenas com o município de Baião que também registrou seis homicídios pelas mesmas motivações.

No entanto, os crimes registrados em Anapu são a soma de casos que ocorreram em 2018 e 2019, sendo três mortes em cada ano. Os seis casos no município de Baião referem-se apenas em 2019, onde ocorreu uma série de crimes no mês de março em um intervalo curto. Pistoleiros assassinaram Raimundo Jesus Ferreira, Marlete da Silva Oliveira, Venilson da Silva Santos, Milton Lopes, Dilma Ferreira de Souza – uma das coordenadoras do Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e seu marido, Claudionor Amaro Costa da Silva.

A região sudeste do Pará é marcada por conflitos. São diversos os crimes que ocorrem como assassinatos, conflitos por posse de terra, trabalho escravo, expulsões ilegais, ameaças de morte, execuções na forma de chacinas e massacres. 

“A SDDH foi instalada em meio a um grande caos, a abertura acontecendo e grandes projetos interferindo na vida do pessoal da região: Tucuruí com a região da hidrelétrica, a publicidade da instalação dos projetos minerais, até então, os projetos minerais aconteciam de uma forma muito velada, e com a abertura dessas informações vieram à tona e encontramos explicações para uma série de violações de direitos humanos na região”, lembra Rosa Corrêa.

A impunidade é regra

Julgamento em Belém do fazendeiro José Edmuno Ortiz Vergolino, acusado de ser o mandante da Chacina da Fazenda Ubá (Foto:Lucivaldo Sena/Acervo H/11/12/2006)

Esses casos mais complexos costumam demandar um maior tempo para serem concluídos, como a chacina da fazenda Ubá e a da fazenda Princesa. Foram quase 30 anos para as famílias terem acesso a seus direitos. Essas duas chacinas viraram um artigo no livro “Luta Pela Terra Na Amazônia” assinado pelos professores Airton Pereira, da Universidade do Estado do Pará (Uepa), e Rogério Almeida.

“A punição para aqueles que são responsáveis pelos assassinatos no campo, principalmente de lideranças, não existe. Se considerarmos a grande quantidade de assassinatos de camponeses no Pará e aqueles casos em que os responsáveis pelos crimes foram identificados e punidos é insignificante”, afirma José Batista Afonso, advogado e membro da Comissão da Pastoral da Terra em Marabá (PA).

Segundo Batista Afonso, que no livro assina artigo, em parceria com o também advogado Carlos Guedes, sobre o Massacre de Eldorado do Carajás, os poucos  casos que tiveram uma investigação também receberam uma grande repercussão na mídia. Mas mesmo após a condenação de alguns responsáveis, nem todos chegaram a cumprir as penas.

O sociólogo Alex Costa Lima defendeu a sua dissertação “Padres Posseiros de São Geraldo do Araguaia: o Caso de Cajueiro”, em abril de 2020, na Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa). A orientação foi do professor Airton Pereira (Uepa) e teve na banca o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro Ricardo Rezende e a professora Edma Moreira (Unifesspa).“Ele (Lima) não conheceu o pai e depois de 40 anos do pai falecido defendeu uma dissertação sobre a luta pela terra em uma universidade pública que de certa forma é um dos desdobramentos dessa luta. A presença do campesinato dentro da universidade é muito forte”, conclui Almeida sobre o caráter emblemático desse projeto acadêmico.

Alicia Lobato é acadêmica de jornalismo, natural de Belém no Pará, e vive em Manaus desde 2017. Integra a equipe da agência Amazônia Real desde 2019, quando iniciou como estagiária depois de participar da 1ª Oficina de Jornalismo Socioambiental promovida pela Amazônia Real e a organização internacional Climate Tracker. Na agência escreve reportagens que pautam a violência contra a mulher e o racismo. Tem interesse pelo jornalismo ambiental e de dados. (alicia@amazoniareal.com.br)

Publicado originalmente em Amazônia Real