Por Magali Cunha

Nas últimas três semanas estou na América do Norte, via Internet, participando de um programa da Peregrinação de Justiça e Paz (PJP) do Conselho Mundial de Igrejas. A PJP são imersões e reuniões em cada continente, desde 2015, identificando as situações-limite de falta de paz e justiça e as possíveis ações das igrejas na superação delas. Neste 2021, o continente foi a América do Norte, com cinco imersões no Canadá, nos Estados Unidos e na Região do Ártico.

Esta foi a primeira vez que uma PJP virtual foi realizada, por conta da situação da pandemia de covid-19. As imersões na América do Norte aconteceram de forma muito organizada com a estrutura digital. A cruel realidade dos povos indígenas e das pessoas negras foi ressaltada nos relatos e interações, a partir do pano de fundo da colonização, marcada pela retirada dos direitos à terra, de ser e de existir e pela escravidão.

Passados séculos, estes países que estão na lista dos mais ricos do mundo, altamente desenvolvidos, tidos como modelos de nações, registram situações amargas e dramáticas de negação de direitos, de destruição e de morte destas populações, que em nada diferem do que vivem indígenas, negros e negras em nossas terras latino-americanas.

Enquanto as imersões aconteciam, na semana passada, aconteceu a descoberta dos restos mortais de 215 crianças nas terras de um antigo Colégio Interno de Kamloops, na Província de British Columbia, no Canadá. O sistema de colégios internos era uma rede de escolas para onde crianças indígenas eram levadas de forma compulsória, especialmente a partir do século 19 e, inacreditavelmente, perduraram até 1996. O sistema era uma parceria do governo do Canadá (que financiava) com as igrejas Católica Romana e protestantes (que administravam). O objetivo era “civilizar” os povos indígenas a partir da educação das crianças: “Matar o índio que está dentro delas e salvar as pessoas”.

Todas as famílias indígenas foram forçosamente separadas por conta desta política até o limiar do século 21. Crianças indígenas eram batizadas e “branqueadas”, suas tranças (forte marca cultural) eram cortadas, porém eram mantidas em péssimas condições. Há inúmeros relatos de abusos de todos os tipos.

A promessa de que retornassem para suas famílias foi parcialmente cumprida. Milhares nunca retornaram e, entre as que sobreviveram, muitas se tornaram vítimas de depressão, de dependência química, sem teto ou moradoras de periferias de cidades. Estes efeitos também atingiram pais e mães que tiveram seus filhos retirados à força. São expressivos os casos de suicídios.

Nas palavras do arcebispo anglicano indígena canadense MarK MacDonald, que acompanhou as imersões da Peregrinação de Justiça e Paz do Conselho Mundial de Igrejas, “o batismo que receberam nos colégios internos não foi suficiente para salvar suas vidas”.

O Colégio Interno de Kamloops, no território do povo Tk’emlúps te Secwépemc, era administrado pela Igreja Católica até o final dos anos 1960 quando o governo assumiu a direção. Os restos mortais das 215 crianças foram encontrados a partir de um processo imposto judicialmente, nos anos 2000, por organizações indígenas sobre o governo canadense e sobre as igrejas, sob a acusação de genocídio. As famílias indígenas exigem reparação, especialmente o direito à verdade e à justiça sobre seus filhos e filhas desaparecidos e mortos. Buscas pelos corpos estão sendo empreendidas em todo o país.

Uma Comissão (Nacional) da Verdade e Reconciliação, estabelecida em 2008, fez uma série de recomendações ao governo quanto à justiça devida aos povos indígenas do país. O governo do Canadá apresentou um pedido formal de desculpas aos ex-alunos dos colégios internos, chamando-os de “capítulo triste de nossa história”. Um dia clássico desta luta por justiça, 30 de setembro, estabelecido como o Dia Laranja, que lembra as vítimas do sistema dos colégios internos no Canadá, foi transformado em feriado nacional a partir de 2021.

O meu grupo de imersão esteve na cidade de Winnipeg onde está concentrada a maior parte das populações indígenas do Canadá. Além da memória do estrago que os colégios internos fizeram nestas comunidades, ouvimos sobre as mulheres indígenas que são cotidianamente abusadas ou mortas (várias desaparecidas). Partilhamos também da situação dos indígenas sem-teto nas cidades. Muitos destes sem-teto são populações deslocadas de suas terras, tomadas por mineradoras, companhias de energia ou criadores de gado. Ou seja, a cultura colonial permanece atuando no extermínio daqueles que continuam a ser tratados como não-humanos, sem o direito de ser e de existir.

Impossível participar desta experiência sem relacionar e lamentar a situação dos povos indígenas do nosso próprio país. A mesma negação da existência, o mesmo genocídio que se perpetua desde a colonização. Ela chega ao século 21 com a cobiça das terras a que têm direito por mineradoras, garimpeiros, grileiros e agentes do agronegócio e com ação devastadora de um governo que serve a estas aves de rapina. São também as mesmas ações impositivas de igrejas cristãs aliadas a poderes políticos e econômicos que seguem demonizando as culturas e o direito destes grupos humanos serem e existirem como povos originários.

Ao mesmo tempo aprendi muito com os grupos das igrejas canadenses e dos Estados Unidos que têm buscado reparar o mal que causaram a estes povos em nome de um processo colonizador aliançado com a religião. Fiquei admirada e encorajada pelo fato de cada uma das pessoas participantes do processo saberem a que povo originário as cidades em que vivem pertenciam. As pessoas das igrejas canadenses quando se apresentavam, falavam os seus nomes, a cidade onde estavam e a que povo aquela localidade pertenceu.

Eu moro no Rio de Janeiro e aprendi com esta experiência. Vou passar a dizer que habito terras que pertenciam aos Tupinambás (Tamoios) e que todos os que aqui viviam foram dizimados porque não resistiram à escravidão e à tomada de suas terras e da sua vida. Quem era o povo dono da cidade que você mora? E se todos nós passássemos a fazer isto para, pelo menos, honrarmos a memória destes irmãos e irmãs em nosso sofrido Brasil?

Escrevo esta expressão porque também aprendi com os indígenas canadenses que somos parentes. Assim eles tratam as pessoas desconhecidas que chegam. Seria mais fácil tratar como estranhos, dizem, mas deve-se buscar um jeito mais respeitoso, uma que habitamos todos o mesmo espaço, a casa comum, a terra. Se nos vemos como parentes, somos mais respeitosos uns com os outros e, também, o cuidado com a terra que habitamos. Respeito e cuidado como palavras de ordem.

Com isso, tive reforçada assim a convicção de que é preciso decolonizar a religião e as mentes e buscar inspiração nesta espiritualidade indígena. Agir em relação às Igrejas e ao Estado como na frase pronunciada por uma indígena canadense: “Nós podemos transformar o veneno em remédio”.

Texto publicado na Carta Capital em 09/06/2021