Helena Costa (abertura) e Jorge Atílio
O Fórum Mundial de Produtores de Cultivos Declarados Ilícitos aconteceu em Barcelona, Espanha, entre 26 e 29 de janeiro, e reuniu camponeses de vinte países da Ásia, América Latina e África. KOINONIA esteve presente acompanhando as discussões. Aqui o assessor do programa Trabalhadores rurais e direitos, Jorge Atílio Silva Iulianelli, tece considerações sobre o evento. A próxima edição do boletim virtual Drogas e Violência no Campo trará novo artigo sobre o tema, assinado por Maria Priscila Lisa das Chagas.
Por um mundo livre de proibicionismo!
O Fórum Mundial de Produtores de Cultivos Declarados Ilícitos
Jorge Atilio Silva Iulianelli
KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço preza a luta contra todas as formas de intolerância. As intolerâncias religiosas, étnicas, geracionais… também as políticas e todas as formas de estigmatização. Dentre as estigmatizações que afetam o mundo dos pobres está aquela relativa à cadeia produtiva dos cultivos declarados ilícitos. No Brasil isso afeta milhares de camponeses em várias regiões. Em especial no Nordeste, na região denominada de Polígono da Maconha, na qual tanto cultivadores de cannabis como lutadores de direitos se vêem ameaçados letalmente pelos efeitos da política nacional de drogas. A erradicação das áreas de cultivo de cannabis sativa tem por conseqüência várias mortes, em especial de jovens; detenção de camponeses e estigmatização da região.
Isso nos fez acompanhar solidariamente a participação de uma pequena delegação brasileira ao Fórum Mundial de Produtores de Cultivos Declarados Ilícitos (FMPCDI), que ocorreu em Barcelona, 26 a 29 de janeiro de 2009. No FMPDCI buscou‑se oferecer espaço para que a voz camponesa pudesse encontrar um meio de expressão para se fazer ouvir na Assembléia Geral da ONU, de março, que revisará as convenções internacionais de política de drogas. Por iniciativa de várias organizações internacionais, dentre as quais ENCOD (Coligação Europeia para Politicas de Droga Justas e Efectivas) e TNI (Transnational Institute), e coordenadas pelo CERAI (Centro de Estudios Rurales y de Agricultura Internacional) e ALMEDIO, foram reunidos camponeses produtores de cultivos ilícitos de vinte países da Ásia, América Latina e África.
A presença brasileira, que contou com o apoio de CERAI e ICCO‑Kerk en Actie, foi constituída por um grupo de três camponeses do Pólo Sindical de Trabalhadoras e Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco e dois cientistas sociais. A principal contribuição que tinham a oferecer era sobre o conjunto de violações de direitos e violência sofrida em função das ações policiais que se estabelecem na região, bem como por ações de grupos de extermínio que se constituem para assassinar camponeses suspeitos de envolvimento com o cultivo de maconha.
No FMPCDI foi realizada uma análise dos resultados da década que a ONU estabeleceu para a eliminação dos cultivos de cannabis, papoula e coca – 1998-2008. A primeira constatação é que os cultivos não foram eliminados. Na verdade, houve uma ampliação da área total de produção desses cultivos. Igualmente não houve redução de oferta e consumo recreativos dos produtos dessas plantas. Ou seja, os principais objetivos da década não foram alcançados. Bastaria isso para justificar a necessidade de revisão profunda das políticas proibicionistas. Porém, mais que isso, o Fórum constatou que em nenhum momento da elaboração ou execução dessas políticas buscou-se ouvir a voz dos setores camponeses envolvidos nessa produção. Há a questão dos povos tradicionais dos Andes, por exemplo, para quem a produção de coca não é um fato novo. Ao contrário, trata-se de um cultivo tradicional, milenar, que precisa ser observado como um elemento cultural e religioso.
Além disso, há a questão do uso dos direitos de propriedade intelectual, vinculado ao uso farmacêutico dessas plantas. Os povos tradicionais e os camponeses não são beneficiados pelo uso de plantas que manuseiam tradicionalmente. Deveria haver revisão dos benefícios hoje recebidos pelos Conglomerados Internacionais. Estes deveriam reverter-se para os povos tradicionais. Os usos medicinais dessas plantas precisam ser revistos. Faltam maiores incentivos dos Estados para que tais usos sejam disseminados e apropriados pelos povos tradicionais e camponeses.
Essas questões tornaram relevante a participação brasileira em tal espaço. Não há ilusão sobre a real possibilidade de mudança do atual tônus proibicionista das convenções internacionais. Porém, os camponeses e povos tradicionais crêem na possibilidade de fazer ouvir suas vozes e ter respeitado os seus direitos. Trata-se, justamente, da construção de um impacto político na ONU que pode fazer a diferença. Um olhar para a política de drogas a partir da valorização dos direitos humanos redefine as discussões sobre as políticas de segurança pública, e também sobre as políticas econômicas. As plantas declaradas ilícitas têm utilidade medicinal, alimentícia, ritual e até industrial, arraigada nas comunidades camponesas. E isso, em geral, é desconhecido pela opinião pública. Por isso, o conhecimento sobre essas plantas deve ser promovido em todos os níveis geográficos.
O que se pretende construir com tal participação é o rompimento com a satanização a que tais produtos declarados ilícitos e seus produtores têm sido submetidos. Trata-se de mais uma face da luta contra todo tipo de intolerância. Camponeses não podem ser submetidos a um jugo por parte do aparelho de repressão do Estado, e por parte da sociedade, por mera ignorância sociohistórica. É necessário ir além dos moralismos. As questões de saúde pública devem ser tratadas como tais, e as de controle de ações econômicas na mesma dimensão. Isso, certamente, retiraria o caráter belicoso de uma considerável parte do problema, e tiraria a letalidade que hoje afeta setores urbanos e rurais de vários países na África, Ásia e América Latina.
Jorge Atilio Silva Iulianelli, doutor em filosofia, assessor do programa Trabalhadores Rurais e Direitos de KOINONIA.