Ler no dia 25 de janeiro o editorial de O Globo condenando a intolerância religiosa no Brasil foi boa notícia. Porém, é importante estranhar os argumentos que ali pretendem se solidarizar com a causa para de fato apoiar o Movimento contra a Intolerância Religiosa.
Aconselha-se naquele texto a não confiarmos na nossa histórica paz religiosa baseada na “convivência íntima da casa-grande com a senzala”, isso entre outras afirmações quanto ao “sincretismo” que manteve as coisas tranquilas.
Se manifestar contra a intolerância, em linhas gerais, é tomar a mesma direção que o Movimento Social que tem clamado por uma Política Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Contudo, as boas intenções nesse e em qualquer caso não devem deixar de fora a necessidade de que a mobilização solidária contra a intolerância se informe bem, evitando se alimentar do mesmo veneno que produz a discriminação.
É importante registrar que a nossa história tem exemplos melhores e confiáveis de libertação e convivência entre pares de religiões diferentes. São exemplo os esforços ecumênicos contra a Ditadura instalada em 1964, bem como os esforços de religiosos e religiosas por constituintes soberanas e constituições com caráter laico (ainda que em nome de Deus). Há muitos exemplos a recuperar, alguns de tempos de calmaria e outros turbulentos – a la Canudos ou da história da formação de Quilombos e de outras ações anti-escravidão.
Vamos sim nos valer de nossa história. A mesma que não deixou os protestantes formarem casas de culto até a República e que manteve a mão forte policial contra os cultos afro-brasileiros até os anos de 1970… Mas não esqueçamos por isso da história recente, na qual se produziu uma critica fundamental a intolerância religiosa à brasileira como um atual e indecoroso capítulo do racismo.
Em nome das vitórias recentes, do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e de algumas mortes que se tem produzido (como no #casomaerosa) a boa vontade e a solidariedade devem vir acompanhadas da reflexão: não é, de fato, da dialética do senhor e do escravo que vamos partir para a superação da intolerância. Os casos e relatos de superação vêm justamente da história de engajamento pela liberdade e igualdade para todos os crentes e não crentes. Qualquer outro exemplo da nossa história de cuja paz se aprenda como subordinação de uns em favor da tranquilidade de todos, não é aprendizado, é envenenamento do projeto que se quer para o futuro. Projeto que tem um bom exemplo do que se alcançou no Estatuto Estadual da Igualdade Racial da Bahia.
Embora o Estado não esteja completamente imóvel – ao produzir leis e algumas iniciativas como as que engatinham na Secretaria Nacional de Direitos Humanos -, evocamos a que muito mais seja feito e que bancadas do preconceito não se oponham outra vez aos avanços, como ocorreu na votação do Estatuto Nacional da Igualdade Racial.
O dia a dia não tem sido de trégua e a intolerância tem gerado vítimas. Expulsões de terreiros de favelas, morte de religiosos, terreiros queimados… Assim, que venha a solidariedade, mas que se abra no mesmo sentido a aprender com a história, tanto dos derrotados como dos iguais, mas nunca de um pseudo bom sentido vindo da dominação (como no modelo “casa grande & senzala”), onde nunca se baseará um verdadeiro convívio social salutar, e menos ainda um Estado Laico para todas e todos.