Rafael Soares com edição de Natasha Arsenio
A situação de desigualdades por onde passa o Brasil tem muitas faces e atinge muitos rostos.
A vida das Comunidades Negras Tradicionais de Terreiros está, infelizmente, marcada por essa realidade. Há a pobreza sem dúvida, mas há também a persistência dos preconceitos e de atitudes violentas, as mais intoleráveis. Situações que desafiam as atitudes, o comportamento de pessoas de fé, como as do Candomblé.
Veja-se o caso do Terreiro em Itaparica: Marco Antônio Marcelino marido e ogan da Mãe de Santo, Mãe Rosa, é assassinado por um vizinho, que está preso e segue fazendo ameaças, por meio de conexões e dinheiro agora dirigidos contra ela, no intuito de expulsá-la e o seu terreiro da área onde está. No mesmo terreno, a Mãe Rosa leva adiante um projeto social com meninos desamparados. Denunciar, buscar as proteções legais e outras do Estado, da polícia e do conjunto da sociedade é o que se deve fazer, o que está sendo feito e se espera que muito mais aconteça para proteger a vida da Ialorixá. E no plano religioso?
A primeira reação é de esbravejar, xingar, se puder bater no dito cujo, rogar todas as pragas e desejar que todos os males eliminem o causador de tanta desgraça. Certa toda essa indignação e impossível negar tanto desejo de destruição do outro. Mas lidar com tudo isso na dimensão da fé, da religiosidade é um desafio. Há quem defenda que tudo se faça e a tudo e a todos se peça para que o outro deixe de existir e de preferência com o mesmo sofrimento que causou. Ira inegável, ação justificável, mas persiste a questão de fundo – o que seria uma intervenção espiritual justa? As crenças partilhadas no mundo dos candomblés trazem dilemas quanto a se seguir essas primeiras reações, como se fossem um primeiro rompante, um primeiro grito de horror e quase ódio.
Um primeiro dilema vem da crença na criação das cabeças e corpos humanos que se dão num ato de amor, tão profundo que ao menos duas divindades se apaixonam pela criatura e a acompanham em toda a sua existência. Um segundo, para ficar em dois dilemas, vem da crença de que todo o mundo está ligado e tem vida: os seres humanos, outros animais, as plantas e as rochas, há uma ligação de tudo e de todos. Como querer fazer o mal sem fazer a si mesmo? Como odiar e querer eliminar o outro sem eliminar um pouco de si? O mesmo amor que por um lado a alguém sustenta por outro mantém o seu inimigo, afinal duas ou mais divindades o amam da paixão original.
Com o coração cheio das maiores e justificadas indignações e a com a reflexão da fé cheia de dilemas é preciso dar seguimento ao fluxo da vida, e muito dos dizeres mais antigos lembram do profundo pedido “afaste-me do mal”, “feche-me contra ele”, que “ele não me veja”, estejam sempre ao meu lado divindades que tanto me amam. E aí começa e termina o jogo das eternidades que aos seres humanos transpassa: cuidar das divindades que lhe amam e serem cuidados por elas, não estarem sós.
A batalha que se vislumbra no plano espiritual envolvendo dois ou mais lados em luta é uma falácia, que há muito os ancestrais africanos resolveram. Não há contendas no plano espiritual da Justiça, pois ela é um só Reino, onde se negociam as grandes harmonias entre as divindades. O enfrentamento do mal é um embate dos humanos. Pela fé aprendida dos antepassados afro-brasileiros é a partir do império da Justiça que o mundo dos seres humanos e o das divindades se comunicam, nessa conexão o desejo da eliminação total do outro não encontra eco, ou melhor, é uma onda que se reflete entre todos os seres conectados plantas, outros animais, rochas e humanos. “Mantenha-se conectado no Reino da Justiça, com a consciência clara, e o mal não lhe eliminará” assim aprende-se dos mais velhos.
Retome-se a causa da Mãe Rosa de Itaparica. Todos os esforços, pedidos, todo trabalho enfim no âmbito da fé não podem abrir mão da ação humana! É nesse lugar da vida que as desigualdades agridem a Ialorixá: na forma de uma proteção policial que não é concedida; da invisibilidade de sua causa porque se dá na periferia da Metrópole, em Itaparica; no destrato machista dos poderes públicos locais por que é uma mulher que está reivindicando; e na falta de grandes aparatos de defesa na justiça por falta de recursos. A solidariedade chama! É essa a possível batalha humana com o suporte das divindades em que se tem fé – a luta da solidariedade contra as violências.
É preciso fazer barulho com todas as forças em favor da vida, é preciso mover a solidariedade antes que se confirmem as ameaças. A liberdade religiosa merece essa ação! Mãe Rosa precisa da sua, das nossas mãos!
* Rafael Soares é Diretor Executivo de KOINONIA. Este artigo foi publicado originalmente no Fala Egbé nº 27.
Vídeo: Depoimento Mãe Rosa de Itaparica – BA
Em setembro de 2012, o Ogan Marco Aurélio do terreiro Ilê Axé Oya Bagan foi assassinado de maneira cruel. O terreiro fica no município de Vera Cruz (BA), especificamente na Estrada do Baiacu, e realiza ações com crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
Desde então, KOINONIA tem prestado assessoria jurídica a Casa e a viúva Mãe Rosa. O inquérito policial já foi encaminhado para o Ministério Público, que ofereceu denúncia ao juiz responsável.
O processo está tramitando na Comarca de Itaparica. O réu permanece preso, porém a insegurança ainda paira sobre o povo do terreiro.
• Assista o depoimento de Mãe Rosa de Itaparica.
• Saiba mais no Dossiê Intolerância Religiosa.