Violação de direitos de comunidades quilombolas na Bahia: até quando?

Texto de Camila Chagas, assessora jurídica em KOINONIA.

Um ano sem respostas. Mãe Bernadete Pacífico, liderança brutalmente assassinada no Quilombo Pitanga dos Palmares, foi mais uma vítima da violência praticada contra lideranças quilombolas na Bahia, estado que possui a maior quantidade de quilombolas do Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística¹.

Bernadete Pacífico era ativista dos Direitos Humanos e mãe biológica de Flavio Gabriel Pacífico dos Santos, mais conhecido como Binho do Quilombo, outra liderança quilombola assassinada, em 2017, por defender o território da sua comunidade contra à implantação de um aterro sanitário. Em julho de 2023, Mãe Bernadete Pacífico clamou por justiça à então presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber², para que o assassinato do seu filho não ficasse impune, sendo vitimada no mês seguinte. As investigações de ambos os crimes não tiveram andamento no Estado da Bahia e foram encaminhadas à Polícia Federal, porém ainda não foram elucidados.

A segunda edição da pesquisa “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”³, iniciativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e da OSC Terra de Direitos, aponta que a violência contra lideranças quilombolas dobrou nos últimos anos no país: de uma média anual de 3,8 assassinatos para 6,4 assassinatos por ano.

Lideranças quilombolas são assassinadas por defender seus territórios
• Em 2017, José Raimundo Mota de Souza, da Comunidade Quilombola Jiboia, situado no Município de Antônio Gonçalves e Lindomar Fernandes Martins, da Comunidade de Luna, município de Lençóis, ambos do Estado da Bahia, foram assassinadas. Os crimes ocorreram dentro de suas respectivas comunidades. Ambos eram lideranças que não tinham inimigos e os territórios quilombolas a que pertenciam estavam em processo de regularização fundiária.

• Outra liderança, o senhor Antonio Correia dos Santos, do Quilombo do Barroso, comunidade assistida por KOINONIA, também foi assassinado quando estava na comunidade, no dia 08 de maio de 2021. Ele alertou para o Estado as ameaças que estava sofrendo e chegou a dizer textualmente: “vão me matar”. Fato que se deu em uma reunião realizada em março daquele ano, na Secretaria de Desenvolvimento Rural da Bahia, que tinha o objetivo de tratar da regularização fundiária do território quilombola do Barroso. Até o presente momento, este crime também não foi elucidado e a liderança que assumiu a representação da comunidade também passou a ser vítima de ameaças e teve sua casa incendiada⁵ em março de 2024. Os autores do crime não foram identificados.

Comunidades Quilombolas x Violência
De acordo com o Relatório⁶ do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o recrudescimento da violência fez com que o INCRA instituísse uma “força tarefa” para realizar a discriminatória das terras devolutas estaduais, retirar ocupantes não quilombolas e titular territórios.

Na Bahia, a Superintendência de Desenvolvimento Agrário (SDA) também instaurou procedimento similar para viabilizar o processo de titulação de territórios quilombolas no Estado. Parte do território de Pitanga de Palmares está contido em terras devolutas do Estado, porém, ainda não foi titulado.

Outras comunidades quilombolas como Barroso, Tapuia, Ronco e Abóbora, assistidas por KOINONIA, situadas no Território de Identidade do Baixo Sul da Bahia, apesar de terem finalizado o procedimento de titulação na SDA, ainda não possuem os seus respectivos títulos registrados em cartório. Estes fatos merecem atenção das autoridades competentes, pois não são casos isolados e, em alguma medida, recorrentes em outros municípios do Estado.

É preciso contracolonizar
Nos últimos anos, o número de denúncias de violações de Direitos Humanos contra Comunidades Quilombolas aumentou na Bahia. Diversas lideranças relatam perseguição, ameaças, assassinatos e incêndios criminosos de suas casas. Até quando o Estado vai se omitir quanto ao direito à propriedade das comunidades remanescentes de quilombo? Quantas vidas serão perdidas para a violência em razão de conflitos fundiários?

Na prática, não há grande diferença entre gestões de esquerda e de direita. O Estado é um ambiente colonialista. Um ambiente colonialista e abstrato. Não existe governo bom para Estado ruim. Assim como não existe motorista bom para carro ruim, ou maquinista bom para trem ruim. Qualquer governo que governar este Estado será um governo colonialista, porque o Estado é colonialista. Quem anda numa bicicleta é ciclista, mas quem anda num carro é motorista, é chofer. Ser colonialista é como ser adestrador de bois. Qualquer governo de um Estado colonialista será um governo colonialista. É preciso contracolonizar a estrutura organizativa⁷. (Nêgo Bispo, p.47, 2023)

A omissão do Estado mata. A ausência do estado inviabiliza o direito à propriedade dos quilombolas, garantido pela Constituição Federal (artigo 68 da ADCT), assim como impede/limita o acesso aos direitos fundamentais e sociais como à vida, saúde, educação, moradia, segurança etc. A violação destes direitos faz com que muitos quilombolas deixem seus territórios por causa da violência.

Quando Nêgo Bispo alerta para a necessidade de contracolonizar a estrutura organizativa do Estado, trazendo como exemplo a experiência de sua comunidade, ele nos explica que a dominação apenas mudou de forma e que a incorporação de territórios quilombolas em empreendimentos imobiliários, os licenciamentos concedidos pelo Estado para exploração de atividades econômicas como a mineração, complexos turísticos, energia solar e eólica, incentivo ao agronegócio etc. são novas formas de colonização: “Trata-se do colonialismo em sua essência. E ainda tem gente que diz que o colonialismo acabou! Levaram o pau-brasil e agora, quando não há mais essa madeira para levar, levam o vento e o sol” (Nêgo Bispo, p.64, 2023).

Levam minérios, alimentos, exploram os recursos naturais preservados pelas comunidades tradicionais e, por vezes, retiram vidas de lideranças por estas defenderem os direitos de suas comunidades. Os empreendimentos afetam diretamente os territórios, pois com eles chegam também a violência, o desmatamento, o cerceamento do direito de ir e vir em áreas que antes eram de livre acesso, além do aumento de casos de estupros, doenças infectocontagiosas e gravidez na adolescência.

Para as comunidades quilombolas, o direito à vida e o direito ao território estão intimamente ligados pois fazem parte das suas formas de ser e existir no mundo, uma vez que “os territórios são espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais”⁸.

Para que o Estado brasileiro alcance o objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária e cumpra o dispositivo constitucional que garante o direito à propriedade dos territórios das comunidades remanescentes de quilombo faz-se necessária uma reflexão crítica sobre as estruturas e as vias instrumentais para a garantia de direitos destes grupos que são atravessados pela urgência da regularização fundiária dos seus territórios para que possam continuar existindo e vivendo. O Estado precisa cumprir seu dever, caso contrário, as normas contidas na Constituição serão reduzidas a meras folhas de papel.

REFERÊNCIAS
1- Veja: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/37464-brasil-tem-1-3-milhao-de-quilombolas-em-1-696-municipios#:~:text=A%20Bahia%20%C3%A9%20a%20Unidade,da%20popula%C3%A7%C3%A3o%20quilombola%20do%20pa%C3%ADs.
2- Veja: https://www.conjur.com.br/2023-jul-27/rosa-weber-visita-penitenciaria-quilombo-bahia/
3- Veja: https://terradedireitos.org.br/racismoeviolencia/uploads/Ficha%20web%20Racismo%20e%20Viol%C3%AAncia%20-%20Portugu%C3%AAs.pdf
4- Veja: https://www.defensoria.ba.def.br/noticias/defensoria-e-solicitada-a-colaborar-em-caso-de-assassinato-de-lideranca-quilombola-de-camamu-em-maio-deste-ano/
5- Veja: https://kn.org.br/blog/2024/05/22/nota-de-solidariedade/
6- Veja: https://www.gov.br/participamaisbrasil/relatorio-cndh-bahia-quilombolas
7- SANTOS, Antonio Bispo dos. A terra dá, a terra quer. Ubu Editora, 2023, 112 p.
8- Veja: Art. 3º, II do Decreto 6040, de 7 de fevereiro de 2007. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/d6040.htm
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