O curso das “outras” guerras

Por Candai Calmon, assistente de projetos e educadora em KOINONIA. Revisão de Natasha Arsenio.

Nossos olhares se voltam agora para as guerras e conflitos sociais que estão fora da rota de notícias do nosso dia a dia. As “outras” guerras ou conflitos instaurados a partir de motivações étnicas, políticas/civis, civilizatórias, ambientais, territoriais e/ou religiosos no mundo – tem persistido em territórios invisibilizados, escancarando a necessidade de medidas humanitárias urgentes. O século XXI apresenta dramas sociais que correm em silêncio sob interesses capitalistas, racistas e neocoloniais das mídias e seus equipamentos de serviço aos poderes globais.

Além das tragédias que já vitimizaram 34 mil palestinos e palestinas¹ em guerra contra Israel e a imigração de 6,4 milhões de refugiados/as ucranianos/as², poucos ouvimos sobre as 1,5 mil mortes de pessoas no Haiti vítimas da violência armada somente neste ano de 2024³. Também não escutamos nos rádios, canais televisivos e mídias sociais a respeito do risco de morte pela desnutrição aguda que aflige mais de 214 mil somalis. A ausência destes e tantos outros conflitos no fluxo informacional da mídia dispersa a nossa reflexão e prejudica nossa capacidade de agência como sociedade civil.

De uma maneira breve aqui nesta conversa, olharemos especificamente para os conflitos de três territórios: Haiti, Somália e República Democrática do Congo. O que sabemos sobre os conflitos nesses países?

Haiti
O conflito atual que envolve o Haiti, país e ilha caribenho situado na América Central, é oriundo da grave crise social, política e de segurança pública, com raízes profundas no processo conflituoso da “independência” em 1804. Ao longo do tempo, além das disputas violentas pelo poder estatal, o país sofreu assassinatos de muitos dos seus líderes e mais recentemente, em 2021, o ex-presidente Jovenel Moïse fora assassinado em um complexo mandato marcado por corrupções políticas, massacres, e financiamentos estrangeiros para mantimento do seu governo “omisso” aos interesses do povo. Os conflitos no território haitiano têm causado instabilidades sociais, corrupções e disputas violentas que, agravados aos desastres naturais, deixam o Haiti um dos países com as piores crises ambientais e humanitárias do mundo.

Sim, os desastres naturais haitianos são assustadores e seus agravamentos ano após ano são absurdamente maiores que as ações mínimas de enfrentamento do Estado, as ajudas humanitárias internacionais (que em muitas instâncias estão subjugadas aos interesses dos poderes políticos) e a força tarefa da sociedade civil organizada, ONGs e etc. Por estar situado no meio ao que os especialistas chamam de “falhas geológicas” (resultantes do movimento da placa caribenha e da placa norte-americana), os abalos sísmicos (terremotos), furacões e tempestades tropicais são constantes e vitimizam anualmente centenas de pessoas em todas as regiões do Haiti⁴.

O sismo que ocorreu no dia 12 de janeiro de 2010 foi o pior de todos os tempos da memória haitiana, ocasionando na morte de 230 mil pessoas e impactos profundos nos âmbitos sociais, econômicos e políticos do país – irreparáveis até os dias de hoje⁵.

Os conflitos no território haitiano têm causado instabilidades sociais, corrupção e disputas violentas que, com os desastres naturais, agravam as crises ambientais e humanitárias no Haiti. Foto: https://pixabay.com/

A problemática atual haitiana é consequência do fogo cruzado entre “gangues”/“grupos marginalizados” e o Estado, que juntos propagam ondas de violências, massacres, assassinatos e sequestros, impossibilitando o cumprimento básico dos direitos humanos, o acesso à uma vida justa, principalmente por parte das populações mais pobres. Com o controle político dos Estados Unidos sobre o Haiti, a saúde, a alimentação e a segurança pública estão cada vez mais distantes, agravando os conflitos no dia a dia e vulnerabilizando ainda mais os sujeitos que historicamente vivenciam as desigualdades de maneira mais aguda e perversa: crianças, mulheres e idosos/as.

A Organização Internacional para as Migrações da ONU divulgou recentemente⁶ que desde o final do ano passado mais de 300 mil pessoas fizeram migrações internas no país, refletindo a crise e instabilidade da sociedade haitiana e estabelecendo uma dinâmica de insegurança principalmente para crianças, mulheres e idosas/os⁷. O acesso a serviços básicos de saúde e as condições sanitárias estão agravadas com a pobreza extrema e a sujeição às doenças transmissíveis, como a tuberculose e a cólera. Os equipamentos públicos como os hospitais e postos de emergência estão saturados e, ainda, o número de vítimas do conflito político e dos desastres sazonais continuam alarmantes.

Somália
Este país do extremo oriente da África compõe o “chifre africano” na região nordeste e abriga também os países da Etiópia, Eritreia e Djibouti. Atualmente, a Somália vive situações de calamidade humanitária por consequência de desastres naturais, como as secas multi-sazonais (aquelas secas que acontecem em vários períodos climáticos do ano) acompanhadas de inundações extremas. Devido à instabilidade do solo e à dificuldade de plantio que se somam a fatores sociopolíticos, a situação nutricional das pessoas é emergencial e a condição crítica de milhares enfrentando a fome aguda e desnutrição na Somália já está prolongado.

A segurança alimentar da Somália é uma problemática que atinge e desestrutura o bem viver humanitário vitimizando vidas, sobretudo de crianças e mulheres ao longo dos últimos anos. Segundo o relatório do Escritório para Coordenação de Assuntos Humanitário da ONU (siga em inglês, OCHA⁸), aproximadamente 1,7 milhão de crianças com menos de cinco anos de idade enfrentam desnutrição aguda. Ao menos 4 milhões de pessoas no país (21% da população) enfrentam “crise ou insegurança alimentar de emergência” devido, principalmente, ao impacto das chuvas e inundações, além das secas extremas. Ainda sob estes dados, 600 mil pessoas fizeram migrações internas devido à problemática da escassez de alimento e dos conflitos sociais-políticos.

Atualmente a Somália vive situações de calamidade humanitária por consequência de desastres naturais, como as secas multi-sazonais que acontecem em vários períodos climáticos do ano. Foto: https://infolliteras.com/

Embora os impactos naturais estruturem profundamente o caos no país, a Somália é um território que tem vivenciado projetos imperialistas, golpes de Estado e guerras civis. Suas terras foram invadidas por portugueses, ingleses, franceses e italianos e sua recente independência em 1960 não amenizou os conflitos relacionados ao controle territorial e da fronteira que marcam profundamente a história deste país. O extremismo religioso e a ditadura de identidade islâmica têm ocasionado formação de milícias rivais que lutam pelo domínio do poder nacional. No início do século XXI, muitos grupos islâmicos se conformaram no país, inclusive a Al-Qaeda, gerando ondas de horror e instabilidade social em todas as regiões.

Também a guerra que se instaurou entre o regime Somali e a Etiópia (1940 – 2009) decretaram consequências de caos, miséria e fome que marcam a população somali até os dias de hoje. Com apoio dos Estados Unidos à Etiópia, os conflitos neste período resultaram em três guerras e diversos embates militares nas fronteiras. Obviamente a população localizada no fogo cruzado destes embates sofreu graves consequências, como os elevados números de mortalidade.

Os anos de ditadura do major e general Jallee Mohamed Siad Barre entre os anos de 1969 e 1991 provocaram caos e lutas armadas, guerra entre milícias e o não cumprimento dos direitos humanos nos aspectos da saúde e segurança da população. Porém, com a sua saída, grupos radicais islâmicos e milicianos pioraram o cenário de instabilidade provocando assim, dentre muitas crises, a imigração de milhares de pessoas.

Um dos pontos de agravamento e conflito na Somália atualmente é a região da “Somalilândia”, uma cidade separatista do país, que fica no extremo noroeste e reivindica autonomia plena deste território. Somalilândia é hoje o epicentro de conflitos e instabilidades sociais agudas, com guerras milicianas que reverberam em todo o país.

República Democrática do Congo
Situado no coração da África Central, este país de clima equatorial e tropical é o quarto mais populoso do continente. A República Democrática do Congo possui riquezas naturais com muita biodiversidade, potenciais hidrográficos e faunas de belezas extraordinárias. Embora os recursos naturais sejam abundantes, a sua população, especialmente a do leste do país, está sofrendo escassez de água e comida, desalojamento e deslocamentos forçados. Os conflitos e violências armados entre milícias do país e rebeliões apoiadas pelo exército da Ruanda tem provocado um cenário caótico para a população. A chamada “Forças Democráticas Aliadas” (ADF) é uma milícia extremista que compactua com o Estado islâmico e atua contra outros grupos milicianos de forma violenta na região leste há mais de trinta anos. A disputa está em prol do controle deste território estratégico e rico em recursos naturais.

Especificamente na região de Kivu do Norte, as cidades de Rutshuru e Masisi estão em conflito contra a rebelião “M23”, caracterizada por mais de cem grupos armados que causam ondas de violência extrema na região.

A República Democrática do Congo possui riquezas naturais com muita biodiversidade, potenciais hidrográficos e faunas de belezas extraordinárias. Fonte: https://geografia.laguia2000.com/

O conflito avança há algumas décadas, mas é desde o ano de 2021 que o país tem vivido índices alarmantes de violência e insegurança que refletem a necessidade de mais de 25 milhões de democrático-congoleses por assistências básicas e ajudas humanitárias⁹. Com as hostilidades intensificadas nos últimos anos, é comum informações diárias sobre centenas de civis gravemente feridos, vítimas de bombardeios e armas de fogo que estabelecem um cenário de horror, sofrimento e insegurança na população. O que acontece neste território, especialmente na região leste, impacta em todo país pelo qual, segundo os dados do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (International Committee of the Red Cross), o conflito já provocou deslocamentos forçados (migrações internas) de mais de 7 milhões de pessoas, sendo 2,5 milhões somente nas regiões das províncias do Kivu do Norte¹⁰.

Por trás do pano de fundo que encobre o cenário de desespero e números alarmantes pouco divulgados nas mídias globais, está a República Democrática do Congo e os sofrimentos diários de pessoas mais vulneráveis. Para as mulheres e crianças democrático-congolesas, especificamente, são constantes as violências sexuais e de gênero expressas nos abusos, estupros, feminicídios, violência obstétrica e os complexos adoecimentos psíquicos. Idosos e pessoas portadoras de deficiência enfrentam fome e dificuldade de mobilidade nos imediatismos que os bombardeios e conflitos armados diários requerem. Sem apoio efetivo do governo, das organizações humanitárias locais e incentivos internacionais, a população enfrenta o pior das fragilidades que a humanidade pode vivenciar.

Traçar a Rota
Aqui fizemos uma reflexão sobre os conflitos e guerras que pouco ouvimos e de alguma maneira estão invisibilizados no campo de notícias que acessamos. Haiti, Somália e República Democrática do Congo são três territórios de centenas de países que vivem processos alarmantes de crise humanitária, como: Iêmen, Afeganistão, Venezuela, Síria e tantos outros.

No Brasil, vivemos conflitos sociais intermináveis, que elucidam a complexidade de uma crise alarmante como as das guerras e pelas quais, de maneira geral, não são tratados dignamente como problemas humanitários: são as lutas de povos e comunidades tradicionais quilombolas, indígenas, populações das águas e mangues e a luta pela soberania de seus territórios; as mortes sem justiça de pessoas vítimas das milícias e da LGBTQIAP+Fobia; o racismo ambiental e a exploração de recursos naturais dentro de territórios de comunidades negras; as violências sexuais, abusos e feminicídios de mulheres e crianças e tantos outros.

Os entrelaces de conflitos que vivemos como humanidade está emaranhado em uma trama social complexa e nos convoca a atitudes certeiras, organizativas e amplas. Traçar a rota do bem viver humanitário requer dignidade ao nosso território e a todos os outros. Requererá também muita disposição para reconstruir e estabelecer a paz humanitária que tanto desejamos.

Notas
1- Dados atuais do mês de abril de 2024. Fonte: afrofeminas.com
2- Fonte: euronews.com
3- Fonte: unocha.org
4- Fonte: Artigo de Rubén Santos: Estudos da Fonte do Sismo do Haiti de 12 de janeiro de 2010 à partir da combinação de Dados Sísmicos Geodésicos. Disponível em Connecting Repositories: www.core.ac.uk
5- Fonte: www.core.ac.uk
6- OCHA (unocha.org)
7- Veja em: www.haiti.iom.i
8- OCHA (unocha.org)
9- Fonte: OCHA (unocha.org)
10- Fonte: www.icrc.org

Referências
• Global Atlas of Environmental Justice (Atlas Global de Justiça Ambiental). Disponível em: https://ejatlas.org/
• International Commitee of the Red Cross (Comitê Internacional da Cruz Vermelha). Disponível em: www.icrc.org
• The International Organization for Migration (Organização Internacional para Migração). Disponível em: www.haiti.iom.i
• United Nations Office for the Coordination of Humanitarian Affairs (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários). Disponível em: www.unocha.org
• Estudos da Fonte do Sismo do Haiti de 12 de Janeiro de 2010 à partir da combinação de Dados Sísmicos Geodésicos. Artigo de Rubén Santos. Connecting Repositories (Conectando Repositórios). Disponível em: www.core.ac.uk
• Revista eletrônica Afroféminas. Disponível em: http://afrofeminas.com
• Revista eletrônica Euronews. Disponível em: http://euronews.com
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