Pedro Rebelo
Professor de História, pós graduado em Ciência da Religião
Colaborador de Koinonia
Há duas velhas máximas de mundos distintos que encaixam-se perfeitamente aos desdobramentos do caso Lázaro. A primeira é um provérbio africano que diz: “Até que os leões contem suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça”. A segunda é a frase consagrada de Karl Marx: “A História se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.”[1]
Recentemente, o caso Lázaro ganhou um rumo completamente distinto quando o G1 – Portal de notícias da Globo noticiou sem nenhuma certeza a especulação de que o criminoso em questão seria adepto de “bruxaria e rituais”, associando seus crimes com a foto aleatória de um assentamento de Exu.
Em primeiro lugar, Exu nada tem a ver com “bruxaria”, criminalidade e tampouco pertencia a Lázaro. O artefato sagrado, na verdade, é do Babalorixá André Vicente, de 81 anos, que teve seu terreiro invadido pela Polícia de Goiás que, no ato da invasão, fotografou o assentamento. Pouco tempo depois a imagem “viralizou” nas redes sociais, como sendo a causa dos crimes horrendos de Lázaro.
O candomblé e a Umbanda, mais uma vez saíram caluniados, sem ter quaisquer relações com os crimes praticados por Lázaro que aliás, não é adepto da fé. E ainda que fosse, é preciso dizer que seus crimes continuariam sendo de sua total responsabilidade, uma vez que as religiões de matriz africana não compactuam com tais atitudes praticadas pelo criminoso. Trata-se de uma demonstração gratuita de Racismo Estrutural e Religioso, uma herança de nosso passado escravista que tem nos Meios de Comunicação um de seus principais aliados na produção de narrativas de ódio. Portanto, não é novidade alguma a associação covarde entre Lázaro e o Candomblé. A História se repete como farsa e mais uma vez a narrativa é do caçador.
O povo preto aparece pela primeira vez nos jornais brasileiros como mercadoria, no contexto da escravidão, nas seções de venda de escravos. Tão logo surgiu o candomblé, sua aparição na mídia é representada nas páginas policiais como sendo atividade criminosa e subversiva, como tudo aquilo que é de preto sempre foi no Brasil. Não foram raras as vezes que os principais jornais da Bahia e do Rio de Janeiro noticiaram batidas policiais em terreiros. Tudo referendado pelo Código Penal de 1890 e posteriormente pelo Código Penal de 1942.
No mundo acadêmico, a Escola Evolucionista criou a narrativa responsável por associar a cultura negra, sobretudo o candomblé, ao atraso social vivido no país. É desta leva que surgem autores como Nina Rodrigues, que tipifica a religiosidade negra como inferior; e seu discípulo, Arthur Ramos, que trata o candomblé enquanto uma doença própria dos negros que lhes impedia a compreensão dos valores cristãos. Além de tantos outros intelectuais brasileiros, ou não, que criaram um discurso falsamente científico para validar suas ideias racistas.
Assim, legitimada pelo discuso jurídico e científico da época, a mídia construiu sua narrativa em relação aos cultos de Matriz Africana. A Revista da Semana, um importante veículo de comunicação no início do Século XX noticiava em 22 de setembro de 1907 a seguinte matéria: “Um feiticeiro mal afamado”, relatando a prisão de um Pai de Santo após a realização de uma sessão espiritual. Na foto, um homem negro.[2]
Diversas matérias como esta figuravam os jornais da então capital do Brasil, relatando prisões de lideranças religiosas de Matriz Africana e a apreensão de objetos sagrados que hoje são parte do Acervo Nosso Sagrado. Nesta mesma linha, os principais jornais baianos como O diário da Bahia, Gazeta do Povo, Correio da Tarde, A Bahia, entre tantos outros noticiavam as incontáveis batidas policiais nos terreiros de candomblé como algo positivo. Uma marca da Primeira República e do Estado Novo.
No mesmo período, João do Rio ganhava fama nos jornais cariocas com a publicação de suas crônicas, posteriormente reunidas na obra As Religiões do Rio, em que utiliza-se de figura de linguagem pejorativa na classificação dos sacerdotes de matriz africana, residentes na cidade do Rio.
Nos anos 1950 a Revista Cruzeiro publicou uma matéria polêmica intitulada de “As noivas dos deuses sanguinários”[3], assinada pelo jornalista Arlindo Silva, com fotografias de José Medeiros. A matéria ganhou proporção nacional e trazia uma série de fotos do momento mais sagrado do ritual de iniciação ao candomblé, reservado apenas aos já iniciados ao culto, portanto proibidas de veiculação. A publicação gerou revolta da opinião pública contra as religiões de Matriz Africana, e consequências terríveis para as pessoas fotografadas, inclusive a morte da Mãe de Santo, em circunstâncias violenta e misteriosa. Além da especulação do suicídio de uma das inciadas em decorrência das perseguições.[4]
Nos anos 1970, em pleno AI-5 a ida de Mãe Cacilda de Assis ao Programa do Chacrinha na TV Globo e Flávio Cavalcanti na TV Tupi despertou a fúria da Ditadura Militar contra os terreiros após a transmissão ao vivo, em rede nacional, da incorporação da entidade de umbanda, Exu Sete da Lira. A ação gerou censura aos programas e aprofundou o discurso e as ações contra os terreiros por parte do Estado e da Igreja.
Com a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 1988, a Liberdade Religiosa voltava à pauta política, mas apenas no papel. O fundamentalismo da Igreja Universal do Reino de Deus, responsável pela onda neopentecostal no Brasil ganhava espaço na televisão, rádio e jornais com seus programas e publicações contra as religiões de Matriz Africana. Nos anos 1990 a publicação do livro Orixás, caboclos e Guias: deuses ou demônios, bem como a matéria criminosa da Folha Universal contra Mãe Gilda davam a tônica da verdadeira cruzada promovida contra os terreiros. Também nos anos 1990 o Caso Evandro reforçou com a narrativa de associação das religiões de Matriz Africana ao Crime.
É verdade que há muitos esforços e resistência do povo de terreiro, presente na academia e nos meios de comunicação. Desde os estudos e publicações de Verger, José Beniste, Gisele Cossard Binon (Omindarewá), Agenor Miranda, Roger Bastide, Mãe Stella, Ordep Serra, Maria do Carmo Brandão (entre muitas e muitos), bem como no Rádio, os antológicos programas Melodias de Terreiro, apresentado por Átila Nunes na Rádio Guanabara, nos idos de 1948; A hora do Candomblé (Rádio Metropolitana, 1968), apresentado por Tata Fomotinho, O despertar do Candomblé (Rádio Tamoio, 1974) apresentado pelo Babalorixá Luiz de Jagun. Entre tantos programas que perderam-se no tempo mas fizeram História no Rádio.
Na TV, devemos rememorar programas fundamentais como O Poder do Machado de Xangô exibido pelo Globo Repórter em 1975; Nos Caminhos da Magia, programa exibido pela extintaTV Continental em 1976, a Minissérie Tenda dos Milagres (Rede Globo, 1985); a Minissérie Mãe de Santo (Rede Manchete, 1990). Entre tantas outras. Sem contar as produções cinematográficas com o advento do Cinema Novo.
Citar todos os esforços e produções do nosso povo tornaria este texto demasiado longo, mas é importante que não se pense que ficamos calados e apáticos. Há de se reverenciar quem veio antes, abrindo caminho, e também a nova geração, que faz da Internet sua trincheira de luta e resistência: Maíra Azevedo (Tia Má), Léo Santos (Mãe Rita), Sulivã Bispo (Koanza), Carolina Rocha (Dandara Suburbana), Júnior Pakapym (Pai Bogojhô), entre muitas e muitos.
A narrativa tem sido a do caçador até aqui, apesar de tudo, mas conta o Itan que Exu, senhor da comunicação, acertou o pássaro ontem com a pedra que atirou hoje. Por isso Loroyê Esù! Mojuba! Que vençam as nossas narrativas!
Referências
FREITAS, Ricardo Oliveira de. Candomblé e Mídia: Breve histórico da tecnologização das religiões afro-brasileira nos e pelos meios de comunicação. Acervo, Rio de Janeiro, v. 16, no 2, p. 63-88, jul/dez 2003
SANTOS, Carlos Alberto Ivanir dos. Marchar não é Caminhar Interfaces políticas e sociais das religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro contra os processos de Intolerância Religiosa (1950-2008) 1 ed. Rio de Janeiro Editora Pallas, 2020.
[1] MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. Trad. de Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
[2] Revista da Semana, Ed 384 – 22/09/1907 disponível em: < http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=025909_01&pesq=feiticeiro&pagfis=6622 >
[3] Revista Cruzeiro Ed. 48 – 15/09/1951
[4] FREITAS, 2003 p. 69