Em 26 de março de 2025, a Câmara Municipal de São Paulo derrubou o veto do ex-prefeito Fernando Haddad ao Projeto de Lei nº 306/2015, instituindo o “Dia do Combate à Cristofobia” a ser celebrado em 25 de dezembro.¹
O projeto, proposto pelo ex-vereador Eduardo Tuma em 2015, visava destacar a necessidade de combater a discriminação contra cristãos. No entanto, em 2016, Haddad vetou a proposta, argumentando que ela poderia estimular a separação entre religiões e afetar negativamente a convivência democrática.²
Com a recente derrubada do veto, a lei entra em vigor imediatamente, oficializando o “Dia do Combate à Cristofobia” em São Paulo.³
Desde 1990, KOINONIA está entre as vozes que denunciam as narrativas de perseguição que não se baseiam em evidências e têm como único objetivo o fomento à polarização e a disseminação do medo e do ódio. Na época, esses eventos mais pontuais eram tentativas isoladas de grupos ultraconservadores de desconstruir direitos adquiridos, especialmente os sexuais e reprodutivos, com foco na defesa do que chamam de bons costumes. Ao longo dos anos, a articulação política crescente desses atores resultou na agenda fundamentalista que emergiu com força nos anos 2000, visando atingir prioritariamente os movimentos LGBTQIAPN+ e feministas.
Portanto, o projeto de lei de Eduardo Tuma em 2015, que parecia uma peculiaridade, uma anomalia exótica de um vereador conservador, na verdade se tratava de mais uma ponta dos inúmeros icebergs fundamentalistas que habitam o mundo e o Brasil desde os anos de 1980 e 90. E o que antes poderia ser analisado como um fenômeno do campo religioso na disputa de espaço entre confissões de fé seguiu muito além.
Hoje, instituir o Dia de Combate à Cristofobia em uma das principais capitais de um país em que não há evidências de que esse fenômeno tenha alguma escala, configura-se apenas como contribuição a um projeto de poder que alimenta agendas regressivas no que diz respeito à diversidade, inclusão e defesa dos direitos humanos, fomentando a discriminação e a intolerância religiosa.
Sobre fundamentalismos
Os ultraconservadores foram ao longo de décadas contestados em suas tentativas de anular direitos e regredir em pautas legais e constitucionais, mas sua agenda nos últimos anos se consolidou em políticas de governo, deixando legado no âmbito municipal e estadual, além de uma ampla frente parlamentar alinhada às suas causas.
Em 2020, KOINONIA ajudou a coordenar uma pesquisa do Fórum Ecumênico ACT Sudamérica na Argentina, Brasil, Colômbia e Peru⁴, realizada por Magali Cunha, que conseguiu definir e identificar o avanço dos fundamentalismos no nosso subcontinente, vejamos a definição alcançada, com um pequeno acréscimo meu a partir do * (asterisco):
“Fundamentalismos (no plural, portanto) são aqui compreendidos como uma visão de mundo, uma interpretação da realidade, com matriz religiosa, combinada com ações políticas decorrentes dela, para o enfraquecimento dos processos democráticos e dos direitos sexuais, reprodutivos e das comunidades tradicionais, políticas de valorização da pluralidade e da diversidade, num condicionamento mútuo. Não são homogêneos, são diversificados, formados por diferentes grupos que têm em comum inimigos a combater com ações distintas no espaço público. Por isso, o caráter basilar dos fundamentalismos é o oposicionismo, que na prática corrente têm apoiado o negacionismo * e o medo em sintonia com o momento do capitalismo predatório, ‘meritocrático’, de costas para as destruições da natureza que condenam progressivamente a humanidade à degradação final por pandemias, poluições, esgotamento de meios de vida e aquecimento global.”
Escolher um inimigo, produzir uma caricatura sobre ele, colocá-lo como oponente à moral cristã coloca os porta-vozes dos fundamentalismos como heróis e mártires perseguidos pelo mal. Criar inimigos para tentar vencê-los é uma estratégia para reunir e movimentar pessoas em torno de ameaças inexistentes, aglutinando-as a partir do medo na promoção da discriminação e do ódio ao diferente.
A cristofobia inventada no Brasil
Considerando países onde há de fato evidências de preconceitos e perseguições aos cristãos, identificamos que o Brasil não está entre os países onde isso ocorre, dadas as estatísticas globais sobre o assunto.
No entanto, formulou-se uma onda de fake news de perseguição, violência verbal e pregações contra o cristianismo, valendo-se inicialmente da necessidade de fechar igrejas durante a pandemia Covid-19 e também de casos inexpressivos de contendas religiosas em sua maioria entre cristãos, assim como o contexto dos enfrentamentos públicos dos conservadores com feministas e a população LGBTQIAPN+, que enquanto movimentos só se referem ao Estado Laico e às leis e conquistas da sociedade.
Assim, pautas de avanço da sociedade brasileira foram taxadas de anticristãs e foi criado o aforisma cristofobia, maquiando a lgbtfobia, a misoginia e a intolerância com as religiões de matriz africana e indígenas. Fake News foram espalhadas, deturpando casos e envolvendo contextos até mesmo de aldeias indígenas e mentiras relativas à perseguição de pessoas missionárias. O ponto a que chegou a propagação deste conceito é de tal abrangência, que qualquer atitude, por escolha do narrador, pode ser rotulada como cristofobia e agressão à maioria (como se esse paradoxo fosse possível para a minoria).
Em suma, poderíamos aprofundar mais sobre a inexistente cristofobia como fenômeno que afeta a sociedade brasileira e os usos e abusos deste conceito na tentativa de ignorar os reais conflitos de intolerância religiosa e do racismo religioso no país, que se volta contra as religiões de matrizes africanas e indígenas, estatisticamente sob ataque dos fundamentalistas. Cristo certamente não aprovaria ter a data do seu aniversário a serviço de uma estratégia de poder forjada na manipulação de fiéis e na distorção da realidade. Lamentável, porém previsível, a decisão da Câmara dos Vereadores de São Paulo.
Rafael Soares de Oliveira
Secretário de Planejamento e Cooperação
Referências
¹ Câmara Municipal de SP aprova dia do combate à Cristofobia. Disponível em: https://sampi.net.br/bauru/noticias/amp/2893050/geral/2025/03/camara-municipal-de-sp-aprova-dia-do-combate-a-cristofobia
² Câmara de São Paulo aprova Dia do Combate à Cristofobia após quase uma década de veto. Disponível em: https://www.portaltela.com/politica/governo/2025/03/27/camara-de-sao-paulo-aprova-dia-do-combate-a-cristofobia-apos-quase-uma-decada-de-veto
³ CNN.
⁴ Fundamentalismos, crise da democracia e ameaça aos direitos humanos na América do Sul: tendências e desafios para a ação. Disponível em: https://kn.org.br/wp-content/uploads/2020/10/FundamentalismosPT-1.pdf
Foto: João Raposo/Rede Câmara