ÈGBÉ – Nós Somos: delegação de KOINONIA participou do 3º Encontro Nacional da Cultura dos Povos de Matriz Africana em Belo Horizonte

A edição teve como objetivo o debate, reflexão e organização coletiva sobre a existência e vivência dos povos de terreiro no complexo sistema social e político brasileiro.

Por Natasha Arsenio, jornalista em KOINONIA

KOINONIA participou do 3º Encontro Nacional da Cultura dos Povos de Matriz Africana acontecido em Belo Horizonte entre os dias 13 e 16 de junho. A delegação levada pela instituição foi composta por Babá Pedro Mendes, Iyá Jôice Cleide e Egbon Amanda d’Omolu, jovens sacerdote e sacerdotisas de religiões afrobrasileiras. A participação do grupo reafirma o compromisso institucional com a missão de formar politicamente novas lideranças de terreiro.

O evento, realizado sob o tema “Nós Somos”, foi uma oportunidade crucial para debater, refletir e organizar a respeito da complexa realidade social e política brasileira.

Durante os quatro dias de imersão, cerca de 500 participantes de diferentes países da América Latina se reuniram para discutir, avaliar e propor diretrizes que visam fortalecer a resistência contra o racismo estrutural que afeta os povos de terreiro e as culturas e religiões de matrizes africanas no país. A afirmação “Nós Somos” foi pensada para reforçar a resistência e a continuidade da luta pela equidade racial no Brasil.

A participação de KOINONIA representa ainda a missão institucional de não apenas formar, mas também conectar as lideranças de sua rede, ampliando o alcance de suas ações e de parcerias viáveis que possibilitem trabalhos conjuntos em prol da justiça social e do reconhecimento das culturas de matriz africana.

Segundo o CENARAB – Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileiro, responsável pela organização do evento, “o 3° ÈGBÉ – Nós Somos será, talvez, o único momento de tão importante reunião nesse ano tão emblemático e desafiador como será o ano de 2024; um ano eleitoral em que a sociedade brasileira escolherá seus representantes municipais e o segundo ano do mandato Lula III, um governo que foi eleito sob a bandeira da reconstrução e união do país”.

Ana Gualberto, diretora executiva de KOINONIA, define a realização do evento como um ato de valor e destaca os espaços de interação com pesquisadores e pesquisadoras que apresentaram visões relevantes sobre as conexões do Brasil com o continente africano.

Conforme relatou Gualberto, esta foi “uma oportunidade muito importante de conexões, mas principalmente de partilha de estratégias e de ações que as comunidades têm feito para se manterem vivas”.

Com a participação de representantes de órgãos como Ministério do Trabalho, da Fiocruz, do IPEA, dentre outros, o encontro abriu caminhos para um diálogo direto com instituições decisórias em nossa sociedade. Com esta oportunidade, as lideranças de terreiro participantes puderam lançar luz a toda potência oriunda de suas comunidades religiosas, reforçando o quão relevantes são os terreiros para seus territórios, bem como para todos os indivíduos que deles são parte.

Segundo Egbon Amanda d’Omolu, uma das jovens levadas por KOINONIA ao evento, a inserção e o fortalecimento da juventude de terreiro em espaços de relevância como o ÈGBÉ contribuem para a continuidade da luta pelos direitos de um povo tradicional que sofre diariamente ataques brutais.

“A juventude preta é o público que é mais tombado nesse país. Precisamos nos imbuir desses espaços, somos o hoje e o amanhã. Para continuar nos defendendo precisamos estar ao lado de quem já faz isso há anos”, analisou a quilombola, jongueira de tradição do Quilombo Santa Rita do Bracuí, educadora social e costureira do Ateliê Palha da Costa.


O 3º Encontro Nacional da Cultura dos Povos de Matriz Africana resultou, ainda, em um documento que registrou todas as reflexões e debates que ocorreram nos dias dos eventos. A íntegra pode ser conferida a seguir:

Reunidos no III ÈGBÉ – Encontro Nacional da Cultura dos Povos de Matriz Africana, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, sob a proteção e regência da nossa ancestralidade e da Iyá Oxum – a força das águas e do feminino, fonte de toda a vida e princípio fundamental da unidade planetária -, nós, povos da terra, povos de Terreiro, povos que dançam e celebram a existência, manifestamos à nação brasileira nosso compromisso com a defesa inegociável do direito a existirmos plena e dignamente, afirmando nossas diferenças e superando as desigualdades históricas frutos do racismo colonial, construído para nos inferiorizar, invisibilizar e negar nossos saberes civilizatórios.

Para tanto, exigimos do Estado e da Nação Brasileira o irrestrito cumprimento dos princípios constitucionais que garantem a cidadania com igualdade e liberdade, na forma de políticas públicas de proteção, reconhecimento e valorização das nossas comunidades, recusando-nos a sermos reduzidos à dimensão religiosa e nos afirmando como POVOS TRADICIONAIS, construtores de singularidades étnicas traduzidas em cosmovisões, estéticas, artes, ciências e culturas próprias.

Nossa luta vem de longe, muitas e muitos sacrificaram suas vidas para que pudéssemos resistir. Todavia, o momento atual se apresenta como uma verdadeira encruzilhada na qual Exu nos requisita a tomada de decisões históricas, sem as quais o futuro de nossos povos fica comprometido, em função de nos vemos imersos em uma guerra espiritual e secular, na qual fomos tornados inimigos sem sermos consultados se queríamos dela participar.

Nesse contexto, à medida que a extrema direita internacional e nacional alarga seu poderio político, assistimos a nação brasileira ser sequestrada por uma frente política conservadora, antidemocrática, reacionária e autoritária, decidida a revogar direitos duramente conquistados nas últimas décadas. No campo econômico, tais grupos tentam aprofundar a lógica neoliberal no Brasil, aprofundando a submissão econômica e política da nação aos interesses dos oligopólios do capital especulativo-financeiro transnacional.

No plano ideológico, a sustentação das políticas neoliberais se dá mediante a tentativa de tomada do aparelho de Estado, objetivando a redução da democracia a uma teocracia fundamentalista lastreada na visão de mundo polarizada de segmentos evangélicos neopentecostais anti diversidade, que demonizam nossos povos e nos expõem à violência racista como nunca visto em nossa história republicana.

No que toca às políticas de Estado, essa perspectiva ideológica se materializa na tentativa de retomada e de aprovação, no parlamento brasileiro, de projetos de leis anti diversidade, cuja evolução foi interrompida com a vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais de 2023.

Assim, vemos o avanço de propostas que atentem contra a soberania dos povos originários em relação aos seus territórios, como também a tentativa de monopólio fundamentalista cristão sobre os corpos das mulheres, sobretudo negras, a exemplo do Projeto de Lei PL1904 que criminaliza mulheres estupradas que abortam – em relação ao qual manifestamos nosso absoluto repúdio -, revogando direitos já consolidados historicamente pelos movimentos feministas. Na esfera educacional, afronta-se a liberdade de pensamento e cátedra na atividade docente, tentando instituir o patrulhamento ideológico e a criminalização de educadoras e educadores.

No tocante aos povos tradicionais de matriz africana, prevalece a retórica da liberdade religiosa para impedir que pessoas de todos os credos tenham acesso ao ensino da história da África e das culturas afro-brasileiras e ameríndias no currículo escolar, conforme determina a lei 10.639/03 e 11.645/08, em um movimento de boicote sistemático à sua efetivação, que vai do parlamento até a gestão escolar, a mercê de educadores neopentecostais que não hesitam em criar toda a sorte de dificuldade para a incorporação dessas temáticas no ensino. De fato, o que se avizinha é a possibilidade de destruição das políticas públicas na forma de ações afirmativas, duramente conquistadas pelo Movimento Social Negro e que tem tensionado o próprio projeto civilizatório da nação brasileira, trazendo para a esfera pública a maioria da população preta e parda que fora historicamente relegada à invisibilidade e exclusão, contrastando, com nossos corpos e presenças, os privilégios naturalizados da branquitude.

Compreendemos que toda essa movimentação antidemocrática e anti diversidade compromete a governabilidade do governo Lula, em um momento em que se propõe a RECONSTRUÇÃO da nação diante do tsunami neoliberal e fundamentalista que se implantou desde o golpe que violou o legítimo mandato da presidenta Dilma Roussef. Nesse sentido, a realidade se agrava ainda mais com o sequestro do orçamento público federal, realizado por um parlamento fisiologista e hegemonicamente dominado pela extrema direita. Esse contexto coloca o governo do Presidente Lula em uma encruzilhada que se, por um lado, exige capacidade de negociação e diálogo com setores de oposição, por outro lado, entendemos que exige também o fortalecimento daquelas e daqueles que estiveram e estão ao seu lado nos piores momentos, como o da sua prisão e o da última eleição presidencial, entre os quais se colocam os povos de matriz africana, especialmente nós, os macumbeiros de esquerda.

A polarização ideológica e política é uma realidade estabelecida, não fomos nós que a criamos, pois somos povos circulares, conectivos e integrativos. Todavia, entendemos que a encruzilhada acima citada não pode significar a negligência ou silenciamento em relação à nossa existência e às nossas demandas pelo aperfeiçoamento e ampliação das políticas antirracistas no país. Durante o III ÈGBÉ debatemos sobre como essa invisibilidade se reflete exemplarmente em momentos como das recentes enchentes no Estado do Rio Grande do Sul, quando nossos povos tiveram seus sagrados submersos nas águas junto com suas dignidades igualmente submersas na ausência de políticas de assistência emergencial que atendessem suas necessidades, pelo que exigimos a imediata implementação de políticas que garantam assistência não apenas material às comunidades dos terreiros rio grandenses, mas, principalmente, recursos necessários à restauração e proteção de seus espaços e patrimônio cultural material e imaterial sagrado.

Da mesma forma, nos causa estranhamento que a presidência da República ignore a realização do ÈGBÉ desde sua primeira edição, ao ponto de sequer nos direcionar uma missiva presidencial que manifeste, pelo menos, o respeito às nossas singularidades e direitos, enquanto, em contrapartida, valoriza publicamente a chamada Marcha para Jesus com a representação do Ministro da Advocacia Geral da União (AGU), Jorge Messias, representando oficialmente a presidência da república e portando uma carta presidencial especialmente dirigida aos segmentos evangélicos-cristãos que, há pouco tempo atrás, faziam arminhas em seus templo e direcionaram suas orações aos piores propósitos contra nós, os diferentes, os progressistas, os democratas e macumbeiros de esquerda.

Finalizamos dizendo que a crise política atual reflete uma crise mais profunda, a crise civilizatória, com o aprofundamento de um projeto de dominação colonial que não hesita em aprofundar a barbárie, a miséria em escala planetária e a exclusão das populações empobrecidas e exploradas que há séculos resistem a ser dizimadas.

Nesse contexto, exigimos o lugar de direito que legitimamente conquistamos na história brasileira, o de povos que, mesmos diante das tentativas epistemicidas de aniquilação dos nossos saberes e visões de mundo, resistiram e resistem, mas que não pretendem mais continuar apenas resistindo, pois queremos viver plenamente. Isso significa que não podemos mais ser tratados secundariamente no plano das relações de poder dentro e fora do aparelho de Estado.

Com isso, exigimos nossa presença efetiva nas instâncias de decisão, nos poderes legislativo, executivo e judiciário, para que não apenas nossos corpos sejam índice de novas construções simbólicas inclusivas, mas para que nossos saberes também contribuam fraternalmente na reconstrução da educação, da economia, da ciência e da cultura nacional. Exigimos, ainda, a ampliação das políticas públicas de ações afirmativas, como também das políticas assistenciais e filantrópicas em todas as esferas da administração pública, saúde, educação, geração de emprego e renda, cultura e combate ao racismo, com transparência através de editais e de mecanismos de acesso desburocratizados, que contemplem nossas singularidades e formas de nos expressarmos, adequando seus objetivos às nossas realidades.

Coerentes com essa visão, invocamos neste III ÈGBÉ a força feminina das águas, em profundo respeito com nossas Iyás, nossas mães, por compreendermos que delas vem a vida e que nelas a vida se expressa. Por isso, deliberamos unanimemente pela inclusão de três mulheres de terreiro que devem nos representar na comissão organizadora da Marcha das Mulheres, que deverá ser realizada em novembro de 2024, reforçando uma aliança das mulheres de terreiro contra o racismo religioso e ambiental. Da mesma forma, reiteramos a importância de investirmos esforços na incidência política das mulheres de terreiros na Cúpula Social Mundial durante a reunião do G-20 no rio de janeiro e na COP 30, em Belém do Pará, no ano de 2025. Reforçamos essa perspectiva, convocando e mobilizando nossos povos a participarem da Marcha Zumbi +30, a ser realizada em novembro de 2025.

Somos tradicionais porque conservamos o poder da oralidade, do ser e estarmos juntos, numa perspectiva socialista-comunitarista não eurocêntrica. Portanto temos muito a contribuir na RECONSTRUÇÃO política de uma verdadeira sociedade democrática, capaz de superar o hiper individualismo neoliberal, base de toda a miséria “meritocraticamente” destinada a nós, os povos da terra, os povos que dançam, os povos que não desaprenderam a conversar com as folhas, com os animais, com as pedras, com as águas e os ventos.

Portanto, a verdadeira RECONSTRUÇÃO da nação não pode nos incluir secundariamente, sob pena de repetirem os mesmos erros históricos dos que buscavam construir o novo, todavia, ancorados em valores e cosmovisões ainda eurocêntricas, coloniais e exclusivistas. O racismo estrutural não conhece limites entre direita e esquerda, por isso só pode ser superado com a ação efetiva dos contra-coloniais, daquelas e daqueles que desenvolveram sabedoria e conhecimento no enfrentamento a esse mesmo racismo. Por isso dizemos em alto e bom som a toda a nação, exigimos respeito e dignidade. Respeitem nossos corpos, respeitem nossos territórios, respeitem nosso sagrado, pois é nele e por ele que NÓS SOMOS!!

III ÈGBÉ, Belo Horizonte, 16 de Junho de 2024

(Fonte: MST – https://mst.org.br/2024/06/18/durante-encontro-os-povos-de-terreiro-reafirmam-seus-direitos-e-a-luta-contra-o-racismo-religioso/)
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