O pedido de perdão do Estado Brasileiro à Anivaldo Padilha

Carolina Maciel

 

O Estado formaliza o pedido de desculpas de Anivaldo Padilha pelas perseguições, tortura, exílio e afastamento familiar. Decisão unânime. Paulo Abrão, presidente da Comissão de Anistia

No dia 22 de maio, o Brasil viveu um momento histórico no país. Torturado no período da ditadura, por parte do governo brasileiro, Anivaldo Pereira Padilha, 71 anos, sociólogo, pai de quatro filhos [Alexandre Rocha Santos Padilha, médico, 41 anos; Celso Reeks Padilha, ator de teatro, 35 anos; Paulo Reeks Padilha, cineasta, 32 anos e Mariana de Castro Padilha, 13 anos] e avô, líder do movimento ecumênico, associado de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço e reconhecido pela militância histórica em favor dos direitos humanos, recebeu o pedido de perdão do governo brasileiro pelos atos terroristas e violações dos direitos humanos em julgamento realizado no Ministério da Justiça, pela Comissão da Anistia.
Por sua vez, a Lei de Anistia que tem mais de trinta anos, promulgada no governo do então, General Figueiredo, no ano de 1979, foi elaborada aos moldes militares, o que representa uma visão lateral e muito particular de uma época. Além disso, diz-se que na época a lei era uma forma de transição do governo militar para uma tentativa de nova leitura para a democracia, redemocratização, o que muitos duvidam. Na verdade, o que paira sobre esta dúvida é que de fato os governantes eram submissos e que hoje, enfim, ela deve ser reinterpretada de acordo com o pensamento democrático vigente. Esta releitura é uma forma de exercer a justiça social no país e fazer com que os direitos sejam reconhecidos e reestabelecida a verdade sobre os fatos/acontecimentos.
No mesmo dia, também foi julgado e negado o pedido de anistia/indenização do cabo Ancelmo, que foi considerado agente infiltrado da ditadura militar. Segundo o entrevistado: Ao requerer a sua anistia, Cabo Acelmo simplesmente mostrou que não mudou. Continua o mesmo agente infiltrado que o caracterizou desde os meses que antecederam o golpe militar em 1964, ou seja, é um agente provocador a serviço da direita. Como líder dos marinheiros, ele liderou a revolta [dos Marinheiros] que ocorreu poucos dias antes do golpe. Esse foi o mote para o golpe, pois a mídia golpista e os militares acusaram o movimento de quebrar a hierarquia das forças armadas. Com isso, criou-se o clima político para justificar o golpe. Creio que todos que acompanham o trabalho da Comissão de Anistia já esperavam pelo julgamento negativo do requerimento dele. Como seria possível indenizar um agente da repressão infiltrado nas forças da oposição? Creio que ele quis testar a coragem da Comissão. Com todo agente provocador, ele quis agitar a água para ver se ele ficava turva. Deu-se mal, mas tenho que certeza de que não desistirá. Provavelmente irá recorrer da decisão.
Acompanhe a entrevista com Anivaldo Padilha:
O senhor está satisfeito com a indenização?
Como eu disse aos jornalistas que me aguardavam à saída do auditório do Ministério da Justiça, não pensei na indenização, apesar dela ser importante. Não sou rico e realmente necessito desse dinheiro. Entretanto, o mais importante, para mim é que o Estado brasileiro, ao fazer a reparação financeira, assume pública e oficialmente, que tivemos uma ditadura civil/militar ilegal e ilegítima que usurpou o poder e estabeleceu um regime de terror de Estado no Brasil. Isso para é o que importa. Além disso, não há indenização que pague ou que possa compensar as violências físicas e psicológicas pelas quais eu e os demais perseguidos políticos passamos.
 
Qual é a sensação que o senhor tem com a unanimidade do julgamento? E há que você atribui esta unanimidade?
 
Senti-me muito bem, pois a unanimidade significa que a minha causa era justa. Eu sempre estive muito tranquilo a esse respeito, porque o meu requerimento estava muito bem documentado com provas que colhi nos arquivos do Estado de São Paulo, Auditoria (tribunal) Militar e na ABIN (é o órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência), antigo SNI.
Qual foi o momento mais intenso do julgamento?
Foi quando a relatora do processo iniciou a leitura da parte do relatório que descrevia as torturas pelas quais passei. Revivi o passado de dores, mas ao mesmo tempo com uma sensação muito grande de vitória. Afinal, sobrevivi, estava ali, vivo e participando de um processo no qual eu sabia que no final o Estado pediria perdão pelos crimes que cometeu. Senti que havia transformado uma derrota aparente em uma vitória real.
O que representa as desculpas formais do Estado Brasileiro para o senhor?
Na verdade, o termo usado pelo presidente da Comissão é perdão. Creio que perdão é muito mais forte do que desculpas. É estranho, mas senti que a minha dignidade como cidadão e como pessoa estava resgatada, pois significava que a luta da qual participei não foi em vão. Vivemos hoje em um Estado de Direito que apesar de ainda jovem e com muitas fragilidades, é resultado daquela luta. Lembrei-me de um versículo bíblico que diz que "os que semeiam com lágrimas com júbilo ceifarão” (Salmo 126.5). O Estado de Direito e o pedido de perdão foram os frutos que colhi com júbilo.
Quanto tempo o senhor esperou por este julgamento? E durante este processo, qual era o momento mais aguardado?
Inicialmente entrei com o requerimento em 2005, mas o enviei pelo correio e tudo indica que se perdeu porque não foi possível localizá-lo. Tive que refazer tudo. É um trabalho muito difícil, penoso e sofrido. Só consegui reescrever tudo no início de 2010. Portanto, se contarmos a primeira tentativa, foram sete anos. Para mim, o momento mais aguardado era o julgamento e a decisão final. Talvez o pedido de perdão fosse o mais aguardado.
Quais são os nomes dos torturadores do senhor?
No meu caso foram: Homero César Machado, Thomaz (Tibiriça), Benome Arruda Albernaz (já falecido), Dalmo Lúcio Muniz Cirillo, Maurício Lopes Lima, todos capitães, além dos policiais Raul Careca, Paulinho Bexiguento, e o delegado Baeta.
O senhor citou o nome dos seus torturadores no depoimento e solicitou que fossem encaminhados para a Comissão da Verdade e para o Ministério Público. Há quantas anda a Comissão da Verdade e qual é a sua esperança quanto a um possível julgamento deles?
A Comissão da Verdade foi empossada há apenas uma semana e ainda não sabemos exatamente qual o seu plano de trabalho. Sua composição, no geral, reflete a correlação de forças que permitiram a sua aprovação consensual pelo Congresso Nacional. Entretanto, a maioria de seus membros tem compromissos claros e históricos com a defesa dos Direitos Humanos e com a necessidade de apuração irrestrita dos crimes cometidos durante a ditadura. Portanto, minha esperança é que a Comissão cumpra realmente seu mandato e identifique os crimes cometidos, quem os praticou diretamente, quem foram os comandantes ou mandantes, quem deu apoio financeiro e logístico etc. Fala-se muito em punir os torturadores, mas é importante frizar que eles executavam uma política de Estado que impôs o terror e estabeleceu a tortura como meio sistemático de interrogatório. E essa política teve o apoio de empresários, de banqueiros, de empresários da mídia. Ou seja, não se pode focar as investigações somente nos setores militares e policiais. É preciso compreendermos que o sucesso da Comissão da Verdade dependerá não somente da competência e dedicação dos seus membros mas, também, da participação, colaboração e mobilização da sociedade civil.
Quanto ao julgamento dos torturadores, ainda temos um longo caminho a percorrer, mas o Ministério Público já está empenhado em seu trabalho e já abriu processos contra alguns torturadores, especialmente aqueles envolvidos em sequestro e ocultação de cadáveres.
Como o senhor interpreta a Lei de Anistia já que ela tem por base uma formulação de 1979 onde o então, General Figueiredo, presidia?
Apesar do movimento pela anistia ter sido muito forte, a lei aprovada (na verdade outorgada, pois foi votada por um Congresso mutilado) foi resultado de um acordo entre as elites, inclusive líderes da oposição clandestina com aspirações políticas. Participei dessas discussões em 1977, ainda no exílio, e o argumento de alguns líderes era o de que só poderíamos regressar ao Brasil se houvesse uma anistia recíproca. Eu fui contra essa posição. Esse acordo não está refletido no texto da Lei de Anistia. Os que interpretam a Lei de Anistia como recíproca se baseiam no item que ela menciona anistia para os condenados pela Lei de Segurança Nacional e crimes conexos. Não sou advogado, mas grandes juristas afirmam que crimes conexos se referem a crimes praticados para dar suporte ao crime principal. Por exemplo, quem estava na clandestinidade usava documentos falsos para esconder sua verdadeira identidade. Isso é um crime conexo. Tortura, assassinato e ocultação de cadáveres são tipificados como crimes de lesa humanidade e não têm nenhuma conectividade com as ações da oposição à ditadura. Portanto, espera-se que o Supremo Tribunal Federal – STF faça uma revisão da sua interpretação da Lei de Anistia. E há ainda outra razão para isso. O Brasil é signatário de todos os tratados internacionais que regem os direitos humanos e é também signatário dos tratados que criaram o Tribunal Penal Internacional e o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Todos esses tratados estabelecem que os crimes de lesa humanidade são imprescritíveis e não podem ser beneficiários de anistia. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos já se pronunciou sobre esse assunto a respeito do Brasil. Estamos aguardando que o Brasil cumpra essa sentença na íntegra.
Em que momento o ecumenismo e os direitos humanos entraram na vida do senhor?
Eu tinha cerca de dezoito anos quando comecei a tomar consciência mais aprofundada dos problemas brasileiros e da necessidade de lutar pela superação das desigualdades no Brasil. Apesar de pertencer a uma família pobre (meu pai era pedreiro, minha mãe operária têxtil e costureira, e ambos com menos de um ano de escolaridade, o ambiente familiar era bastante politizado). Meu pai era Getulista e tinha participado da Revolução de 1932, ao lado das forças getlistas. Política era um tema recorrente nas conversas em torno das nossas refeições. Com dezoito anos ingressei no antigo Partido Socialista Brasileiro (PSB), que não é o mesmo que existe hoje.
Esse interesse político se aprofundou com a minha participação no movimento de juventude metodista que me levou a participar também das atividades organizadas pelo Departamento de Juventude da Confederação Evangélica do Brasil. É nesse momento que tem início o meu envolvimento com o movimento ecumênico de uma forma mais orgânica. Aqui também a influência familiar foi importante. Cresci num ambiente familiar muito plural do ponto de vista religioso. Desde criança convivi com parentes católicos e espíritas e o mesmo acontecia no bairro em que eu morava. Essas diferenças religiosas nunca foram fator de conflitos. Além de já ter essa formação de respeito inter-religioso, nossas reflexões nos encontros de juventude evangélica nos indicava que ecumenismo não se resumia simplesmente à busca da unidade entre cristãos, mas que essa unidade estava relacionada à missão. E começamos a entender que missão não era fazer proselitismo, mas, sim, lutar pela superação de todas as barreiras, inclusive as políticas, econômicas e sociais, que impediam o ser humano a ter uma vida digna.
Quais eram as ações/mobilizações que o senhor praticava que sugeriu à ditadura a sua prisão?
Eu estava envolvido em pelo menos quatro frentes as quais incluiam também a minha militância no movimento estudantil : 1) Coleta de informações sobre a repressão, especialmente os casos de tortura e enviava essas informações para as redes ecumênicas no exterior para que fossem divulgadas; 2) Produção e divulgação de notícias aqui no Brasil como forma de contra informação já que os meios de comunicação estavam censurados; 3) Organização de redes de solidariedade e de proteção para ativistas políticos perseguidos pela ditadura e que corriam risco de prisão e de morte. Essas redes eram formadas por pessoas e por algumas instituições entre o eixo São Paulo-Rio e as fronteiras com Uruguai e Argentina; 4) Mobilização de estudantes para participarem de campanhas contra a repressão.
Em que ano o senhor foi preso? E durante quanto tempo ficou preso? Em quais lugares?
Fui preso em fevereiro de 1970 por agentes da Operação Bandeirantes (OBAN), centro de repressão clandestino comandado pelo Exército, mas com participação de oficiais de outras armas e também da Polícia Militar e Polícia Civil. Fui solto em setembro do mesmo ano e nesse período estive preso na OBAN (três vezes), no DEOPS e no Presídio Tiradentes.
O senhor exilou-se. Em quais lugares e por quanto tempo?
Deixei o Brasil em maio de 1971. Estive exilado primeiramente no Uruguay e Argentina por muito pouco tempo e depois no Chile, também por pouco tempo. Em seguida fui para os Estados Unidos, onde permaneci por quase oito anos até o início de 1979, quando fui para Genebra/Suíça. Regressei definitivamente ao Brasil no final de 2003. Ao todo, estive exilado por cerca de treze anos.
Qual a memória mais dolorosa do tempo do exílio?
Além da saudade da família, dos amigos e das coisas mais simples como uma comida especial, guardo ainda na memória duas lembranças que me fizeram sofrer muito. Uma foi não poder vir ao Brasil quando da morte do meu pai, em 1975. Sabia que ele estava nas últimas, queria vir, mas, fui aconselhado por pessoas muito bem informadas a não me arriscar porque era certo de que eu seria preso e provavelmente morto. Não pude despedir-me do meu pai nem participar do seu sepultamento. Entretanto, o sofrimento maior foi não poder estar aqui quando meu filho Alexandre nasceu e só poder vê-lo e conhecê-lo quando vim ao Brasil após a anistia, quando ele estava com oito anos. Perdi essa etapa da vida dele e creio que foi uma perda grande para ele também. Essa dor foi amenizada devido à atitude da mãe dele que possibilitou um pouco de comunicação entre nós e posteriormente entre o Alexandre e seus irmãos Celso e Paulo. Por tudo isso, tenho grande e profundo respeito pela mãe dele. Essa é uma dívida que a ditadura ou o Estado brasileiro jamais terão condições de pagar. Usávamos fitas cassetes que eram levadas e trazidas por amigos que viajavam. Só pude conviver com ele após meu regresso definitivo ao Brasil.
Carolina Maciel
 

 

 

 

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