Carolina Maciel
Nossa Constituição, como bem explana Ricardo Marcondes Martins, conta com um plano ideológico próprio, ou seja estipulou originalmente um conjunto de valores que foram positivados como normas do maior status hierárquico em nosso sistema jurídico.
Dentre este valores, transformados em princípios constitucionais, temos o da igualdade formal entre os cidadãos e também o da busca de maior igualdade material entre os mesmos.
Nossa Constituição adotou claramente o modelo de Estado social, ou seja a de um Estado que intervém através da lei e outros atos estatais nas relações jurídicas entre as pessoas para realização de uma maior justiça social,ou seja para realização de uma vida social com menor diferença entre as classes e demais grupos sociais no campo econômico, afetivo, sócio-ambiental, etc.
Esta intervenção estatal ocorre no mais das vezes em colisão com o principio da igualdade formal, chamado de isonomia pelos juristas.
Como é cediço na contemporânea doutrina de direito constitucional princípios constitucionais por trazerem em seu conteúdo valores, ou seja, virtudes humanas e sociais que o constituinte quis ver realizadas na vida social, em geral tendem a colidir entre si.
Aristóteles já havia, há séculos, identificado este caráter colidente das virtudes humanas. A coragem é uma virtude mas a prudência também. Coragem e prudência colidem entre si, sendo necessário ponderar entre ambas, de acordo com a circunstância fática, para que uma prepondere em detrimento da outra.
De um soldado em guerra exige-se mais coragem pois é obrigado a enfrentar tiros do inimigo pondo sua vida em risco constantemente, mas sem eliminação total da prudência para que não morra bobamente. De um piloto de avião exige-se mais prudência para que não ponha em risco sua vida e a dos passageiros, mas sem eliminação total da coragem se não o avião não sai do chão.
Pois nossa Constituição, como conjunto de normas superiores de uma sociedade democrática hiper-complexa, determina que se observe na vida social uma série de virtudes ou valores que obviamente tendem a colidir entre si. Essas normas os juristas chamam de princípios.
Assim nossa Carta Magna determina que as pessoas tenham liberdade individual, mas ao mesmo tempo que tenham segurança ou observem medidas de preservação da saúde pública, por exemplo. A liberdade individual é colidente com o valor da segurança, que exige para sua realização de normas restritivas daquela. Conforme a circunstância fática um ou outro princípio deve preponderar, tendo-se sempre em vista o plano ideológico da Constituição (não o pessoal do intérprete). Legisladores, juízes e autoridades administrativas têm de realizar tais ponderações, em abstrato ou em concreto, no cotidiano de suas decisões.
Pois o Estado social ao realizar o valor da justiça social, intervindo na relação entre as pessoas, normalmente o faz tendo de preponderar tal valor em detrimento da igualdade formal.
O princípio da igualdade formal determina, por exemplo, que os particulares que travam um contrato devem ser tidos como iguais perante a lei e às clausulas contratuais.
Ocorre, entretanto, que se tal contrato tem como parte um particular em nítida desvantagem econômica em relação ao outro contratante, o Estado através da lei intervém rompendo a igualdade entre as partes estabelecendo normas intransigíveis pelas partes com vistas a proteção da parte mais fraca, do chamado hipossuficiente.
Isto ocorre nos contratos de trabalho, nos de consumo, etc. CLT e Código de Defesa do Consumidor são exemplos de intervenções estatais na relações privadas com vistas a promoção de uma maior justiça social em detrimento da noção de igualdade formal para obtenção de uma maior igualdade material.
No Estado social é assim mesmo. Em geral para realização de uma maior igualdade material temos de restringir a igualdade formal. Ambos os valores entram em tensão e pelo plano de valores de nossa Constituição a busca de maior igualdade material deve preponderar na maior parte das situações, mas sem eliminar por completo a igualdade formal, restringindo-a no mínimo necessário para que a igualdade material prevaleça.
Pois é esta situação a que ocorre na questão das cotas raciais em nossas universidades.
Durante um bom pedaço de nossa história os negros não eram tidos como pessoas por nossa ordem jurídica, eram coisas, escravos!
A escravidão gerou graves distorções sociais. Existem brancos pobres, mas esses são minoria entre os pobres. Existem negros ricos, mas esses são minoria entre os ricos.
Etnia no Brasil, por conta de nossos antecedentes históricos, é fator profundamente relacionado as desigualdades sociais. Racismo aqui é forma de garantia dos interesses econômicos de nossa elite euro-descendente.
Não é segredo para ninguém que estudo significa ascensão social.
Cotas para negros em nossas universidades é medida eficaz não apenas de compensação de um passado vergonhoso para nossa nação. Mas forma atual de realização da justiça social.
Tentar fazer que a igualdade formal prepondere sobre o valor da justiça social é postura ideológica própria do liberalismo. Não há problema algum em defender tal ponto de vista no plano politico, realizar o livre debate.
Mas no plano jurídico não. Nossa Constituição adota o modelo do Estado social, não o do Estado mínimo liberal. Justiça social em nosso pais é norma constitucional. Comando a ser obedecido e não apenas tema para debate.
Obviamente o debate democrático poderá no futuro resultar em termos uma Constituição liberal, que estipule um Estado mínimo, mas até lá temos que cumprir a Constituição posta em 1988. É o que se espera do STF no julgamento da constitucionalidade das cotas, Estado de Direito significa governo das leis, não governo dos juízes.
Com informações Carta Capital