Carolina Maciel
Embora tenha passado por uma situação terrível, com desabamentos, desmoronamentos de terras, soterramentos de terras, perdas incalculáveis, enfim, as cidades quase todas destruídas pelas chuvas torrenciais de janeiro de 2011, com prejuízos materiais e outros irreparáveis, a região serrana do Rio de Janeiro, toda ela, sem exceção, prepara-se para comemorar a Páscoa, ocasião em que parte dos povos do mundo celebram a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Assim, KOINONIA, traz a reflexão abaixo como forma de esperança para todos os povos nesta Páscoa.
Sexta-feira, dia 22 de abril de 2011. Sexta-feira da Paixão. Cem dias desde a tragédia que se abateu sobre a região serrana do Rio.
Para a religião nascida de uma radical experiência vivida por um grupo de judeus palestinenses (quando havia ainda menos de um século de dominação romana na região), a Páscoa guarda um significado central. Primeiro porque resgatava a memória da intervenção libertadora de Deus na História de Israel, que nunca permitiu que caísse no esquecimento o seu Êxodo do Egito. Depois, porque herdeiros dessa ancestral memória viram seu líder morrer pendurado numa cruz romana e creram testemunhar sua ressurreição.
A passagem da opressão à libertação fundou os pilares de uma fé que se tornaria a cada nova geração mais consistente. A Páscoa judaica – essa memorial passagem para a liberdade – lançou os fundamentos de uma religião que teria na Ética sua mais elevada realização.
A passagem da morte à vida inaugurou uma maneira nova de crer e experimentar a fé. A Páscoa cristã – nascida da convicção de que Ele não repousa entre os mortos – semeou o que há de mais poderoso na religião: a fé no poder infinito da Vida.
Do mesmo modo que Israel e o Judaísmo não nasceram política e institucionalmente do Êxodo, a Igreja Cristã não firmou seus alicerces históricos na Ressurreição. A Páscoa (seja a judaica ou a cristã) ocupa a base sobre a qual edifícios posteriores foram erguidos. A história política do Judaísmo e do Cristianismo revela que essas instituições nasceram séculos depois de seus eventos fundadores. Como instituições, todavia, subverteram suas bases e, não raras vezes, corromperam-nas.
A Páscoa anuncia, a despeito do poder dos poderosos e da força dos fortes, que a Liberdade e a Vida têm a palavra final sobre tudo e sobre todos. E isso só é possível porque no âmago dessa fé mora a convicção na Graça. O Deus de judeus e cristãos – revelado explicitamente em Jesus, o Cristo – é, acima de tudo, um Deus de amor gratuito e imerecido. Essa verdadeira rebeldia de valores funda a fé e, quando sinceramente experimentada, refunda a vida concreta das pessoas.
O mundo não está entregue a sua própria sorte. “Tudo foi feito por Ele, n’Ele e para Ele”!
Passados cem dias, Friburgo e região precisam fazer um balanço sério e lúcido sobre sua história recente.
As perdas e prejuízos materiais serão refeitos na medida do empreendedorismo de indivíduos e empresas arrojados, bem como na seriedade e comprometimento do poder público em seus múltiplos níveis e instituições. O reerguimento material e profissional está associado ao espírito desbravador humano. Aquela centelha de fé (que independe das religiões) e que faz com que nos auto-transcendamos. Junto com Jesus na cruz da sexta-feira da Paixão estão todos que viram o suor do seu trabalho se diluir abruptamente na chuva e na lama.
A morte de Jesus está explicitamente associada a um conjunto de opções e caminhos assumidos por Ele. Diferente de uma ovelha que segue cega para o abatedouro, Jesus caminhou desde a Galiléia desejoso de recriar o mundo. Movido por uma utopia seminal, Ele enfrentou o que há de mais sórdido no poder dos que mandam. Foi torturado e assassinado porque cometeu crimes hediondos aos olhos dos que estavam nos tronos. Como pode um pobre Galileu se permitir ser chamado de Rei ou de Filho de Deus?
A tragédia que assolou a tantos em nossa região tem certa relação com a história evangélica. Se há desígnios maiores por trás de tudo que nos ocorre, há também atores concretos que respondem por decisões e falta de decisões. Se é verdade que as autoridades do tempo de Jesus têm responsabilidade direta sobre sua morte, é também verdadeiro que nossas autoridades têm igual responsabilidade sobre os descaminhos que nossa cidade e região tomaram. A irresponsável falta de fiscalização sobre a ocupação do solo e a velha falta de planejamento estratégico para o município levaram para cruz daquela madrugada muitos inocentes.
Óbvio que houve eventos regidos pelo imponderável. Mas por nessa conta tudo que vivemos é, no mínimo, descabido.
Se fossem somente as perdas materiais, a vida seguiria e, quem sabe, com mais força, qual uma árvore que sofre uma poda radical e brota de novo com força e viço. A questão é que houve perdas humanas. A tragédia tem também um tom dramático. Pessoas, crianças, anciãos, amigos de perto e de longe foram, sem que pudessem se defender, tragados pela força da natureza e levados para longe de nós. O que pode ser mais triste que um pai desenterrar para enterrar seus filhos? Filhos que dormiram para acordar sorridentes no dia seguinte e cujo sono foi prolongado por uma noite que insiste em não amanhecer?
Para muitos a madrugada de onze para doze de janeiro de dois mil e onze não consegue ver raiar o dia. Ainda chove muito na alma de tantos irmãos.
Essa mesma sensação deve ter soterrado os corações daqueles que apostaram suas vidas em seguir o Galileu de Nazaré que anunciava que o Reino de Deus estava próximo. Gente que deixou uma vida para trás e viu tudo se esvair no sofrimento e na decepção da cruz. O evangelho conta que passaram a ficar trancados no cenáculo, por conta do medo. Há muitos irmãos trancados dentro de si, porque ainda há nuvens pesadas do lado de fora.
A questão é que aqueles que optaram por seguir Jesus tinham um lastro muito extenso. As palavras e gestos da caminhada com Jesus fizeram com que rapidamente se erguessem do medo e da dor. Testemunharam a ressurreição pascal porque viram reacender em seus corações a chama da Vida que experimentaram. A vida já não era a mesma; tudo estava impregnado da presença de Jesus.
Conosco, por outro lado, ocorre algo diferente. Materialmente, temos pouco lastro porque nossos impostos lamentavelmente servem a outros propósitos e não retornam a nós como direito de cidadãos. Espiritualmente, nossas bases ainda patinam na incerteza da fé e da graça.
A ressurreição de Jesus se seguiu ao sofrimento da cruz. A fé na ressurreição de nossos queridos só se seguirá ao sofrimento daquela noite horrenda quando nossas instituições nos ajudarem a destrancar as portas e a afugentar o medo. Temos medo da morte porque não seguimos, verdadeiramente, os passos de Jesus.
Ainda que demore um pouco mais, é indispensável que experimentemos a fé na ressurreição. É isso que faz a vida realmente ganhar sentido. A Páscoa só será efetivamente celebrada quando enxergarmos que a Vida nasce em Deus e só se realiza verdadeiramente quando às mãos de Deus retorna. Além de cheio de Graça, Deus é paciente e conosco chora e enfrenta o medo. Há em Deus uma espécie de paciência pascal: aquela que fará com que enlutados, ainda que um pouco mais tarde, tenham a certeza de que a Vida é quem tem a palavra definitiva.
Ricardo Lengruber Lobosco, Teólogo, Pastor Metodista, Prof. na UMESP