Atílio Iulianeli
Publicamos abaixo trechos de uma crônica de Jorge Atilio Iulianeli, assessor do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos, sobre a visita ao Rio de Janeiro de Vânia Tatiane da Silva Santos e Jocivaldo Cruz de Sá, jovens da região do Submédio São Francisco. Eles vieram ao Rio em maio para apresentar a pesquisa sobre Efeitos das Ações Juvenis para a Superação da Violência no Submédio.
Essa pesquisa foi realizada por KOINONIA e pelo Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco com financiamento da Cese (Coordenadora Ecumênica de Serviço). Uma análise sobre ela pode se encontrada no livro “Águas juvenis no Velho Chico – Estudo de caso com a juventude camponesa: sua metodologia, seu aprendizado, seus efeitos e seus impactos” que acaba de ser lançado por KOINONIA e Cese.
Carta, quase crônica, de dois jovens camponeses sertanejos que se encontraram com um montão de gente.
Todos os dias são os últimos dias, o último dia é hoje
Walter Benjamin
Rio de Janeiro (RJ), 23 de maio de 2007.
Caras amigas e caros amigos;
KOINONIA desenvolve uma assessoria naquela região ao Departamento de Jovens da Secretaria de Mulher e Jovens do Pólo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio São Francisco, nos últimos quatro anos também aos jovens organizados por meio da Coppabacs (Cooperativa de Pequenos Produtores de Bancos de Semente), uma cooperativa de agricultores que disseminam sementes crioulas, para a soberania e segurança alimentar da região, no Baixo São Francisco. Nossa principal ação é a formação política e cidadão para o desenvolvimento rural sustentável e solidário, por meio de ações culturais. Por isso, é uma grande alegria o que vou partilhar com vocês e para algumas e alguns já é um agradecimento, ainda informal, pelo apoio e carinho. Nós recebemos esses dias, aqui no Rio de Janeiro, dois jovens camponeses sertanejos, das cidades de Jatobá (PE) e Rodelas (BA), com quem trabalhamos há alguns anos. O motivo da vinda deles era duplo: socializar os resultados da pesquisa que eles realizaram sobre os efeitos das ações juvenis no Submédio São Francisco para a superação da violência e fazer um intercâmbio com jovens da comunidade quilombola de Alto da Serra do Mar, no povoado de Lídice, município de Rio Claro, no Rio de Janeiro.
Estiveram aqui conosco, Vânia Tatiane, agricultora de área seca, 21 anos, estudante de pedagogia na UNEB,
Eles fizeram um circuito privilegiado. Na quarta-feira, pela tarde, conversaram com jovens do projeto Rotas de Fuga, do Observatório de Favelas, com quem partilharam os temores e esperanças da juventude que vive as agruras do processo de extermínio promovido pelos efeitos da proibicionista política de drogas. Na medida em que esta termina por alimentar lógicas de controle territorial armado, deixando reféns comunidades inteiras, torna ainda mais vulneráveis os corpos jovens, em especial masculinos, entre 15-24 anos nas áreas urbanas, entre 15-32 anos nas áreas rurais.
Os olhares, falas, afagos, abraços, questões, sussurros, todos foram vibrantes. As confusões de linguagens jovens distintas nos seus regionalismos e códigos particulares também. Ficou uma gama de curiosidades para uns e outros. Os jovens da Maré tinham alguma – pequena – curiosidade sobre os processos da cadeia produtiva do Polígono da Maconha e seus processos de geração de ciclos de violência. Os jovens do sertão tinham muita curiosidade sobre como se estabeleciam estratégias de sobrevivência em um território tão minado por presença de agentes violentos de códigos distintos entre si (tanto em termos da fragmentada rede qualificada como ilícita, como da polícia). Ao fim e ao cabo, os dois grupos de jovens se davam conta de quão necessárias são estratégias de construção de alternativas, a partir da sociedade civil e do Estado. E acrescia a pergunta em resposta ainda: o que o Estado pode oferecer como alternativa?
À noite eles foram ao campus Méier, da Universidade Estácio de Sá, numa turma de Pedagogia, na qual leciono, numa aula de Filosofia da Educação, para o segundo período. Eles tinham dúvidas sobre como alunos universitários ouviriam outros estudantes universitários do sertão, do Nordeste. Em especial, tinham dúvidas porque falariam na condição de jovens camponeses, de agricultores. Por outro lado, os estudantes de Pedagogia se perguntavam: o quê essa experiência ajuda a compreensão de nossa própria realidade? Ao fim e ao cabo, após uma exposição muito tranqüila por parte deles, choveram questões sobre tudo: a respeito do processo de formação para realizar a pesquisa; a respeito do processo de formação de multiplicadores e das ações que os jovens desempenham; sobre os enfrentamentos com a questão da violência, entre outras. Uma questão particular chamou a atenção: a questão sobre como os jovens camponeses pesquisadores refletiam sobre os resultados da pesquisa? – e ficou isso como um desafio.
No dia seguinte, eles foram de manhã para o PROFEC (Programa de Formação Educação e Comunitária), na Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Trata-se de uma organização que desenvolve projetos de formação profissional e cidadã com crianças e jovens em Jardim Primavera e articula processos políticos e ecumênicos em toda a Baixada Fluminense. Eles se encontraram com 25 jovens da região. Pareciam se conhecer há muito tempo. Isso se deu quase todas às vezes. Após a apresentação dos resultados da pesquisa rolaram questões de esclarecimento e muita conversa sobre como vivem os jovens lá e aqui na Baixada.
Foi um momento também enriquecedor, porque se tratavam de jovens da periferia urbana, que vivem em áreas de situação de risco de morte, mas com enfrentamentos diferentes daqueles vividos no Complexo da Maré. Ao mesmo tempo, há ainda entre eles vários que têm pais ou avós que são migrantes nordestinos. Uma das coisas que chamou a atenção para os dois jovens camponeses sertanejos era como o sotaque nordestino irritava ou causava espécie de estranhamento para os jovens da Baixada. Talvez um processo de rejeição de origens, ou simplesmente o bom humor carioca tirando sarro com o diferente, ou o velho preconceito do Sul/Sudeste em relação ao Nordeste.
Na parte da tarde, eles estiveram na UFF (Universidade Federal Fluminense), campus do Gragoatá, no município de Niterói, no Rio de Janeiro. Primeiramente, se encontraram com os professores Paulo Carrano e Ana Karina Brenner do Observatório Rio Jovem. Tiveram uma excelente conversa. Falaram para mim que apreciaram muito poder contar das experiências que têm vivido e responder a muitas questões. Depois foram para a turma da disciplina da Sociologia Rural, do curso de Engenharia Agrícola, conduzidos pela profa. Ana Motta. Mais uma vez eles disseram: parecia que ela nos conhecia há muito tempo. E ficaram muito felizes com a introdução que ela fez sobre a região, a luta dos atingidos pela barragem de Itaparica e o Pólo Sindical. Apresentaram a pesquisa aos jovens universitários e ouviram e responderam questões. Para terminar o dia, foram até o Solar do Jambeiro, assistiram aos jovens cantores da Escola de Música Villa Lobos e participaram do lançamento do livro “Laudo Multidisciplinar em Conflito Socioambiental” da profa. Ana Motta.
Na sexta-feira, tiveram com a Priscila Chagas, nossa assistente, uma pequena excursão cultural no Centro do Rio de Janeiro, pela manhã. Foram à exposição sobre a China, no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), e ficaram pasmos com uma das obras que não parecia ter figura alguma: isso é arte? Perguntaram-se! Na parte da tarde, no escritório de KOINONIA, foi quase uma experiência de êxtase coletivo. Não só apresentaram a pesquisa, como disseram a muitos: nossa pesquisa! E ainda falaram das ações com a juventude: essas que a equipe de KOINONIA conhece bem, disseram. O tempo inteiro a cumplicidade, o desejo comum para identificar em todas as falas aquilo que permite avançar a radicalização da democracia, a construção da justiça social, o empenho por desenvolvimento rural sustentável e solidário, a superação de todas as formas de violência, estavam presentes – elementos que constituem o ecumenismo libertário pelo qual vive KOINONIA. Foi muito bonito ver como cada pessoa, quem está cumprindo atividades as mais diversas na instituição, se reconheceu como parte de cada uma das conquistas, perdas, alegrias, sofrimentos e esperanças que Jocivaldo e Tatiane partilharam.
No sábado, tivemos um dos momentos mais importantes desse intercâmbio: O encontro de jovens camponeses sertanejos com jovens remanescentes de quilombo. Fomos até o povoado de Lídice, na cidade de Rio Claro, na comunidade do Alto da Serra do Mar. O dia estava meio gris. Porém, o sol brilhava na baía de Angra dos Reis. Escolhemos esse caminho de ida porque era de uma paisagem mais exuberante. Os olhos, os corações e as mentes se encheram daquele verde da serra da Mantiqueira e do mar da baía de Angra. Ao atravessarmos os túneis esculpidos há mais de 200 anos pelos escravos, naquelas montanhas, a beleza negra e afro se confundia com a beleza da escultura e da ausência de iluminação naquela travessia. Já no caminho barrento e pedregoso para a casa de dona Teresinha, a matriarca da comunidade, o coração batia mais acelerado, a expectativa crescia tanto quanto a adrenalina fazia correr o desejo do encontro.
Carro parado, as pessoas se achegando para nos receber, muitos cachorros dispersos: nossa, quanto cachorro…Um deve ser campeão, o mais velho deve ser o dono do lugar, dizia Jocivaldo. Isaías, com aquela voz do timbre do seu Jorge e aquele sorriso inebriante, nos recebeu, bora chegar. Entramos. Ana, companheira de KOINONIA, assessora assistente do Programa EGBÉ, velha conhecida da comunidade, foi se chegando para a cozinha: vou ajudar pra fazer a comida, vão caminhar… Isaías quebra o roteiro: primeiro, o café. Pão feito em casa, queijo da fazenda, cafezinho quente e doce da roça. Estamos em casa, diziam Jocivaldo e Tatiane, em que concordamos tacitamente Ana, Priscila e eu. Durante o café, as muitas conversas de reconhecimento, as muitas risadas. Paulinho, o filho mais velho de dona Teresinha, um jovem senhor com quase a minha idade ou um pouco mais velho que eu, ria todo o tempo – a mãe comentava: está quase cego, é o glaucoma…
Fomos com Bené, Isaías, Miriam, Vanessa e as crianças, os cinco: Ana Emília, Priscila, Jocivaldo, Tati e eu – éramos um séquito feliz e esperançoso. Caminhamos naquela trilha de barro, que subia. Jocivaldo, Bené e Isaías conversavam sobre cobras, as várias que ali existem: tem de quatro ventas?, perguntou Jocivaldo, risadas: mas, o que é isso?, queriam saber. Explicações. Risadas. Tem não. Mas, havia outras… e tome conversa. No caminho encontramos Hélio e João que construíam a casa do primeiro, esse aí é um primo meu, explicava Isaías. Fomos à roça de cana e mandioca. É tudo como na nossa realidade, concluía Tatiane, muda a vegetação, aqui é floresta de mata atlântica, a nossa é caatinga.
Seguimos, vimos os riachos, quanto mais subíssemos veríamos nascentes, e tudo segue para se juntar ao Paraíba, velho de guerra, e ainda está ali, puro, água boa de beber. Bebe filho, disse Bené ao João Paulo, que lhe pediu para beber. Fomos até a agrofloresta, plantada no início desse ano, já em período de segunda limpeza. Bené voltou para casa com as crianças, que choravam por nos deixar. Isaías nos mostrou essa outra roça, da qual tinha grande orgulho, porque ele participou do mutirão e isso ainda ia seguir para outras comunidades de remanescentes de quilombo da região. Mais de quatrocentas mudas foram plantadas. Tudo pensado agroecologicamente.
Retornamos à casa de dona Teresinha. Agora o almoço: Vaca atolada, arroz, feijão, carne moída, salada verde. Tudo muito bom. Delícia de comida. E a conversa solta, e as risadas, e as piadas. Concluída a refeição, um papinho curto ainda na casa e vamos sentar para uma conversa mais amiúde. Descemos da casa para o templo da Igreja Assembléia de Deus, que se congrega ali – quase sob o Reino, é sob a casa (coisa de teólogo). No templo estão quase todos os da casa, as crianças não vieram para a conversa. Os jovens da comunidade, alguns casados, outros solteiros ainda, muito novinhos. Isaías abre a conversa. Tudo muito organizado, como que tendo um tempo, como cumprindo um ritual. Ele fala, diz o que a gente veio fazer aqui, fala da alegria desse acontecimento.
Ana recebe a palavra, fala um pouco mais e me pede para fazer as honras de introdução à fala dos jovens. Procuro ser breve, falo de KOINONIA, com quem os jovens sertanejos e os quilombolas trabalham e conhecem, falo do conjunto dos programas e digo da importância desse diálogo entre dois grupos que têm identidades, semelhanças e diferenças para construir visões de mundo, estratégias políticas, ações culturais. Jocivaldo e Tatiane tomam a palavra, falam da alegria da partilha. Contam suas experiências. Falam de suas vidas. Sobretudo, dizem que falam se sentindo em casa. Apresentam os resultados da pesquisa. Todas as pessoas ouvem. Eles terminam e pedem que falem. É dona Teresinha quem fala primeiro, diz que é muito bom saber que jovens, onde existe violência, produzem ações para a superação dela, e conseguem superar. É bom. Jocivaldo a interrompe, Isaías interrompe… ela sorri timidamente, quase mineiramente, e retoma a palavra do ponto que tinha parado, como se ninguém a tivesse interrompido.
A conversa segue. Os dois jovens do sertão fazem muitas perguntas sobre a comunidade quilombola, em especial sobre racismo, sobre as lutas que eles têm. Eu pergunto sobre os jovens da comunidade. Todas as respostas são muito ricas, muitas falas. A conversa parece que vai seguir sem fim. Peço a Ana para interromper porque a gente precisava retornar. Para terminar, canções do Paulinho, uma que ele fez para Lídice. Ana diz, você tem que fazer uma para o Alto da Serra. Hilda e Débora, a primeira irmã de Isaías; Bené; Paulinho e dos outros dez filhos de dona Teresinha e seu Dito; e a segunda esposa de Bené e cunhada de Isaías, concordam. Aliás, todo relato dessa experiência é falho, sem falar da presença marcante dessas mulheres na comunidade. Mais um café, antes de sair, e seu Geraldo oferece uma série de enigmas: o que é que é: quatro mortos esticados e cinco vivos balançando encima deles? O que é que é encima um vivo, embaixo um morto e embaixo outro vivo? E seguia, parecia não ter fim, e muitas risadas, muitos agradecimentos, muitos abraços…
Seguimos para o carro e vínhamos para casa. Quando quê, começa um enxame de perguntas para a Ana Emília, dos dois jovens, e minhas e de Priscila, sobre a diferença entre a propriedade coletiva e as questões que dela seguem, em comparação ao processo do reassentamento irrigado: processo sucessório? Separações conjugais? Parentes de fora? E por aí seguia. Foi um papo animado. Foi bom, foi muito bom.
O domingo e a segunda-feira serviram para restabelecer o espírito. Mais passeios na cidade, da Zona Norte à Zona Sul.
Fim de noite no domingo, uma pizza
No mais, um beijo para todas e todos;
Jorge Atílio Silva Iulianelli
Assessor do Programa TRD
Saiba mais sobre o livro “Águas juvenis no Velho Chico” lendo a notícia Águas juvenis no Velho Chico – nova publicação