Comunidade contesta matéria do Jornal Nacional

Helena Costa

Tanto a comunidade de São Franscisco do Paraguaçu quanto a Conaq emitiram notas repudiando matéria da Rede Globo, veiculada no dia 14 de maio. A reportagem, que ocupou quase um bloco inteiro do Jornal Nacional, questionou a identidade quilombola da comunidade e levantou suspeitas sobre o processo de regularização fundiária.

 

A Conaq – Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas protestou divulgando documento criticando o Sistema Globo. Leia abaixo os dois documentos:

 

NOTA PÚBLICA

COMUNIDADE REMANESCENTE DE QUILOMBO SÃO FRANCISCO DO PARAGUAÇU
Cachoeira, Bahia.

As falsidades veiculadas pelo Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão no dia 14 de maio deste ano “Crime no quilombo – suspeitas de fraude e extração de madeira de Mata Atlântica” repetem na história o que significou o 14 de maio de 1888 para a população negra no Brasil, dia seguinte à abolição oficial da escravatura. O dia 14 daquela época significou o acirramento das relações escravistas, da violência racial contra negras e negros, e a tentativa de exterminá-la através de inúmeras medidas de exclusão e apartheid, dando continuidade ao processo de exclusão social e criminalização da população negra.

Passados cem anos continuamos a assistir às práticas racistas, novamente a covardia daqueles que atacam as comunidades negras utilizando as estruturas poderosas de dominação se manifesta através da veiculação de uma reportagem fraudulenta e tendenciosa, sem oferecer a comunidade nenhuma oportunidade para se defender. Nossa comunidade assistiu a reportagem exibida no Jornal Nacional da Rede Globo com profunda indignação diante da atitude racista expressa na má fé e na falta de ética de um meio de comunicação poderoso que está submetido a interesses perversos e tenta esmagar uma comunidade negra historicamente excluída.

Já esperávamos por esta reportagem, pois fomos testemunhas do teatro que foi armado por ocasião das filmagens,onde boa parte da comunidade envolvida na luta pela regularização do território quilombola nem sequer foi ouvida, visto que a equipe de reportagem se recusou a registrar qualquer versão contrária aos interesses dos fazendeiros, cortando falas e utilizando de métodos persuasivos, já que demonstrou expressamente o objetivo de manipular e deturpar a realidade, inclusive . Tentamos conversar com os prepostos da TV Bahia, filial da rede Globo, mas fomos ignorados. Logo vimos a vinculação da reportagem com os poderosos locais que tentam explorar nossa comunidade. Diante deste sentimento de indignação com a reportagem fraudulenta exibida hoje vimos a público divulgar as verdades que Globo não divulga:

Historicamente, nossa comunidade ocupa este território. Os relatos dos mais idosos remetem nossa presença a  muitas gerações. Ali sempre praticamos um modo de vida fruto de uma longa tradição deixada por nossos ancestrais. Extraímos da Floresta a Piaçava, o Dendê, a Castanha, e tantos outros produtos. Extraímos tantos tipos de cipós diferentes que usamos para fazer cofos, cestos e tantos outros artesanatos aprendidos com nossos avós. Nós amamos a floresta e a defendemos. Nossa luta para defender a floresta causa a ira de poderosos interesses que desejam o desmatamento para a grande criação de gado que cresce no recôncavo. Estamos decepcionados com a falta de dignidade do jornalista que expôs seu nome numa reportagem fraudulenta, pois as imagens do desmatamento de madeira apresentado na reportagem não foi filmada em nossa comunidade, sendo que a pessoa flagrada no corte de madeiras não pertence a comunidade de São Francisco do Paraguaçu, confirmando a manipulação dolosa, visto que as falas foram cortadas e editadas com o objetivo de transmitir uma mensagem mentirosa e caluniosa. Perguntamos aos responsáveis pela matéria: Por que não relataram as vultosas multas não pagas ao IBAMA pelos fazendeiros? Por que não mostraram os mangues cercados que inviabilizam a sobrevivência da comunidade?

Desta maneira, os poderosos que nos oprimem preferem partir para a calúnia, fraude e abuso do poder econômico. Tentam assim, dissimular já que sabem da força da verdade e do nosso direito. O Sr. Ivo, que aparece na reportagem, se diz dono da nossa área é um médico com forte influência política na região, à Frente de seus interesses está o seu Genro, conhecido como Lú Cachoeira, filho de um ex-prefeito e eterno candidato a prefeito. Lu Cachoeira tem um cargo de confiança no Governo do Estado como assessor especial na CAR (Coordenação de Ação Regional) e utiliza sua influência política para perseguir a comunidade. Esta família poderosa tem feito várias investidas contra a comunidade utilizando, inclusive, capangas, pistoleiros, ameaçando a comunidade, violentando crianças, perseguindo idosos, inclusive, utilizando métodos torpes refletidos nas ações violentas de policiais militares não fardados a serviço da família Santana que pode ser comprovado através de relatório da Polícia Federal que já teve diversas vezes na comunidade para nos defender.

Imbuídos do sentimento de justiça não podemos compactuar com atitudes que visam reverter as conquistas democráticas de reconhecimento de direitos da população negra, um verdadeiro afronte aos artigos 215, 216 e o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal. O povo negro e as comunidades quilombolas cientes de que o caminho de reparação das injustiças raciais é irreversível e que o direito constitucional à propriedade de seus territórios tradicionalmente ocupados é uma conquista da democracia brasileira, não sucumbirá aos interesses poderosos que durante toda história do Brasil promoveu atitudes autoritárias e de desrespeito ao Estado Democrático de Direito.

Lamentamos a covardia daqueles que usam o poder da mídia e do dinheiro para oprimir e perseguir comunidades tradicionais. Já estamos acostumados com esta prática perversa. Nosso povo resistiu até aqui enfrentando o peso da escravidão. FIÉIS A NOSSOS ANCESTRAIS, CONTINUAREMOS FIRMES, DE PÉ, LUTANDO PELA LIBERDADE!

Pela vergonhosa manipulação dos fatos e depoimentos,QUEREMOS DIREITO DE RESPOSTA E QUE O INCRA E A FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES SE PRONUNCIEM.

Salvador, 15 de maio de 2007

Comunidade São Francisco do Paraguaçu

 

 

NOTA DE REPÚDIO AO SISTEMA GLOBO DE COMUNICAÇÃO

 

A Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, entidade representativa das comunidades quilombolas de todos os estados da Federação,  vem tornar público o repúdio ao Sistema Globo de Comunicação pelas informações veiculadas durante reportagem do Jornal Nacional no dia 14 de maio do corrente. É desrespeitosa a forma como esse meio de comunicação tratou a história de um povo que, arrancado de suas terras, construiu parte do patrimônio brasileiro (hoje usado por alguns poucos). Repudiamos, sobretudo por se tratar de um Grupo de Comunicação que usa de concessões publicas para ainda mais aprofundar as desigualdades entre pessoas negras e não negras. A forma como se tratou a Comunidade Quilombola de São Francisco do Paraguaçu, no Estado da Bahia, deixa cada vez mais evidente a serviço de quem está esse sistema de comunicação.

 

E se não bastasse às agressões feitas ao povo quilombola ao duvidar da sua identidade, papel esse que a Constituição Federal da República não permite, nem Globo e nem a qualquer outra instituição no dia 14  de maio do corrente, repetem-se as mesmas atitudes no dia 15, buscando provar aquilo que não é da sua competência. Lamentamos que um instrumento tão forte como um canal de televisão, use tanto tempo de sua programação, para agredir as pessoas, ao invés de ajudar a diminuir as desigualdades em nosso país.

 

Exigimos, por parte da Rede Globo, respeito à população quilombola e às instituições e legislações nacionais e internacionais como o Decreto 4.887/2003 da Presidência da República do Brasil e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT, que asseguram que as pessoas remanescentes de quilombos são as responsáveis pela sua autodefinição. Portanto, não cabe ao Sistema Globo de Comunicação, nem a ninguém, senão às pessoas quilombolas, dizerem se são ou não remanescentes de quilombos.

 

Acreditamos que atitudes como essa da Rede Globo comprometem o papel da imprensa e dos meios de comunicação como estruturas fundamentais à democracia, no momento em que privilegiam os interesses de uma única camada da sociedade – a elite latifundiária. Não aceitamos mais que concessões públicas sejam utilizadas por forças conservadoras para ludibriar, enganar, negar direitos, esconder verdades sobre nossa história.

 

Esperamos que episódio como esse não continue acontecendo, pois eles ferem a democracia e desrespeitam os direitos humanos.

 

Pernambuco, 16 de Maio de 2007

Secretaria Executiva Nacional

Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ

 

Leia mais sobre o assunto na seção Notícias do Observatório Quilombola.

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